Há quem leia para esquecer, há quem leia para passar o tempo, e há quem leia como quem abre uma ferida com precisão cirúrgica, sabendo exatamente onde vai doer. Franz Kafka estava, com alguma clareza, entre os últimos. Não dizia isso com orgulho. Não havia afetação em sua relação com os livros. Mas havia algo de radical na forma como os deixava entrar. Talvez ele mesmo não soubesse ao certo por que voltava aos mesmos autores, sempre eles, como quem ensaia uma conversa que nunca se completará. O que se sabe — pelas cartas, pelos cadernos, pelas obsessões — é que certos livros não o deixaram em paz. E ele também não pediu que deixassem. Para Kafka, a leitura parecia mais uma espécie de prova moral do que uma atividade estética. Ele buscava tensão, conflito, angústia. Não queria se identificar com os personagens — queria ser desafiado por eles.
“Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, foi uma dessas fissuras. Ele escreveu a Max Brod que lia como se estivesse sendo julgado. “As Tentações de Santo Antão”, de Flaubert, o prendia numa repetição ritualística, quase como quem visita um deserto onde já se perdeu antes. E havia Gógol, Dickens, Kleist — vozes que não se harmonizavam entre si, mas que, nele, encontravam ressonância. Kafka não lia para reunir ideias. Lia para ser atravessado por elas. O gesto de reler — que para tantos é um conforto — nele era um retorno ao abismo familiar. Esses cinco livros, mais do que favoritos, funcionavam como espelhos que recusavam devolver uma imagem reconfortante. Cada um, à sua maneira, o desmontava. E era esse o pacto: entrar num texto e sair dele menor, mais inquieto, mais atento ao que dentro de si ainda sangra. Porque há dores que não querem cura. E há leitores que sabem disso. Kafka era um deles.

Três irmãos. Um pai que ninguém ama. Uma morte que todos anteveem. A tensão moral de uma casa dilacerada transforma-se num tribunal de almas. Aliócha, o mais jovem, é o espírito suave da fé; Ivan, o intelectual, questiona tudo o que é divino e humano; Dmitri, impulsivo, vive no limite entre desejo e ruína. Em torno deles, Dostoiévski constrói uma arquitetura teológica, onde a justiça humana parece sempre menor que a tragédia que a inspira. A narrativa não apressa. Ela cerca, espera, pesa. Cada fala carrega o mundo. A dúvida arrasta mais que qualquer certeza. Entre o silêncio de Deus e a incapacidade de amar, o romance avança como um abismo que se explica aos poucos. Não há redenção fácil, nem vilão óbvio. O pai, um velho lascivo e patético, é apenas o estopim de uma implosão ética que já estava acesa em cada filho. Tudo é crise: da razão, da fé, da linguagem, do perdão. Lido por Kafka como um espelho invertido da alma, este é um daqueles livros que não oferecem alívio, mas revelação — e, ao final, uma espécie de rendição à complexidade do humano. Um romance onde nenhuma pergunta é respondida, e mesmo assim tudo o que importa está dito.

Em um deserto onde a areia parece pensar, um homem solitário se depara com o desfile de todas as tentações que a mente humana já criou. Antão, eremita no limite entre fé e delírio, é visitado por heresias personificadas, filósofos de todas as escolas, deuses caídos, monstros sincréticos e fantasmas da História. O que Flaubert constrói não é um enredo, mas uma tempestade metafísica. As visões se sucedem em ritmo febril, sem transição clara entre o sagrado e o profano. Tudo se mistura: o erotismo, o ascetismo, a dúvida e o êxtase. O protagonista tenta resistir, mas não como quem enfrenta o mal. Ele hesita como quem busca sentido. O texto assume a forma de uma liturgia desordenada, cheia de vozes que se sobrepõem como uma sinfonia de contradições. Há algo de teatral, de barroco, mas também de íntimo e opressivo. A linguagem é exata, ritmada, quase musical — cada frase parece ter sido lavrada com paciência. Kafka lia esta obra em voz alta, hipnotizado, como quem conversa com uma febre. Não há trama no sentido tradicional, apenas uma sucessão de lampejos filosóficos. Um livro difícil, sim, mas inesquecível. Não se atravessa impunemente esse tipo de deserto.

Nascer sem amparo, crescer entre ausências, aprender a amar com medo. A vida de David Copperfield é narrada pelo próprio, da infância até a maturidade, como um exercício de lembrança e reconstrução. Dickens escreve com emoção contida e ironia afetuosa, criando uma galeria de personagens que parecem respirar — da doçura impossível de Peggotty ao narcisismo cruel de Uriah Heep. A voz do narrador não é cínica nem ingênua: é marcada pelo espanto diante da violência cotidiana e pela ternura que resiste, mesmo depois de tudo. Ao contar sua própria história, David tenta decifrar o que o moldou: o amor materno perdido, a opressão escolar, as ilusões do mundo adulto. E encontra, nesse gesto, uma forma de resistência. O texto alterna entre o melodrama e a análise social, mas nunca se afasta da intimidade emocional. Kafka lia este livro como quem encontra uma autobiografia escrita com outra caligrafia. Porque, no fundo, é disso que se trata: escrever-se para não desaparecer. “David Copperfield” não é apenas um romance de formação; é uma cartografia afetiva da memória, onde até a dor encontra sua casa na linguagem. Um clássico não porque envelhece bem, mas porque nunca deixou de sangrar.

Akáki Akákiévitch não quer muito. Só um novo capote. No rigor do inverno russo, isso já é quase pedir demais. Um homem ridículo, alvo de risos, empurrado pelas engrenagens de um sistema indiferente. Mas quando ele enfim consegue o objeto do seu desejo — com esforço, com economia, com esperança — o mundo o despede com crueldade silenciosa. A história, escrita com o humor grotesco de Gógol, transforma um casaco em símbolo de dignidade. E quando ele é tomado, o que sobra não é apenas frio, mas um tipo de aniquilação interior que nem o fantasma consegue resolver. A narrativa caminha entre o riso e a angústia, com uma ironia que nunca se explica. Gógol não escreve para consolar. Ele denuncia com suavidade, cutuca com absurdos, ridiculariza a lógica burocrática antes mesmo que ela tenha se tornado sistema. Kafka enxergou nisso uma espécie de gênese — como se a opressão moderna nascesse ali, entre ofícios mal redigidos e chefes que não escutam. Não há redenção para Akáki, mas há revelação: de que às vezes o mundo exige demais de quem tem quase nada. E ainda assim exige que sorria. Uma pequena tragédia, esculpida com precisão e silêncio.

Michael Kohlhaas é um homem honesto demais para o mundo em que vive. Um comerciante de cavalos prejudicado por um ato de abuso nobre, ele recorre à justiça e, diante do silêncio institucional, responde com fogo. Não por vingança pessoal, mas por princípio. É aí que começa sua queda — ou sua ascensão ética, depende do olhar. Kleist narra com frieza quase documental, sem juízo explícito. A narrativa é seca, implacável, quase jurídica. A justiça que Kohlhaas busca se transforma lentamente em obsessão, e o leitor se vê forçado a perguntar onde termina o direito e começa o delírio. A trama, aparentemente simples, carrega uma força política brutal. Não há grandes batalhas, apenas a escalada inexorável de um homem contra um sistema que o despreza. Kafka encontrou neste livro não apenas uma antecipação de suas próprias angústias, mas uma anatomia da culpa sem redentor. A linguagem é direta, quase dura demais — e justamente por isso, avança como um veredito. O que começa com um roubo de cavalos termina como uma acusação ao poder em todas as suas formas. Uma obra pequena em volume, mas monumental em desconforto.