Quando a justiça cabia em 96 páginas: a história esquecida dos bolsilivros de faroeste que o Brasil devorou em silêncio

Quando a justiça cabia em 96 páginas: a história esquecida dos bolsilivros de faroeste que o Brasil devorou em silêncio

O Brasil já teve um Velho Oeste. Não um de fato, mas um de papel, impresso em tinta barata, com lombada mole, e colado às bancas de jornal das grandes cidades e aos balcões das padarias de interior. Entre as décadas de 1950 e 1970, o faroeste não era apenas um gênero cinematográfico de exportação ou uma estética kitsch de barbearia. Era uma forma dominante de leitura popular. Os protagonistas, invariavelmente armados e silenciosos, andavam a cavalo por terras americanas que ninguém aqui conhecia, mas que todos visualizavam como se fossem parte do sertão brasileiro. Esses justiceiros de ficção viviam entre a pólvora e o papel. Eram os heróis dos bolsilivros de faroeste, e talvez nenhum outro tipo de literatura tenha sido tão lida, passada de mão em mão e esquecida com tamanha intensidade.

Os bolsilivros, livros de bolso de formato reduzido, capa mole e impressão econômica, representaram, no Brasil, um fenômeno editorial duradouro e peculiar, que atravessou décadas e moldou o imaginário popular. Inspirados nos pulp fictions norte-americanos e nas novelas de bolsillo espanholas, começaram a circular com força entre os anos 1950 e 1960, num momento em que o país vivia um intenso processo de urbanização e expansão da cultura de massa. Surgiam como alternativa acessível à literatura de livraria, inserindo-se num circuito paralelo, marcado pela velocidade, pelo baixo custo e pela capilaridade de distribuição.

As editoras que lideraram esse mercado, como Vecchi, Monterrey, Bruguera e Tecnoprint, operavam com uma lógica seriada e industrial muito mais próxima das engrenagens do rádio e da televisão do que da tradicional cadeia livreira. Era uma literatura produzida em escala, com textos traduzidos às pressas, pseudônimos abundantes e fórmulas narrativas rígidas: tramas velozes, heróis maniqueístas, finais previsíveis, mas eficazes. O leitor não comprava o título pelo autor, e muitas vezes nem pelo enredo, mas pela coleção: “Cowboys Invencíveis”, “Faroeste”, “Bangue-Bangue”, “Falcão Negro”. Cada exemplar funcionava como um episódio autônomo, mas parte de um fluxo contínuo. Comprar, ler, trocar, descartar. Os livros custavam pouco, duravam pouco e eram feitos para isso. Eram, sob certo olhar, literatura descartável. Sob outro, uma forma concreta de inserção cultural para camadas que historicamente ficaram à margem do mercado editorial formal.

Apesar do estigma da baixa literatura, os bolsilivros cumpriram um papel decisivo na formação de leitores nas décadas do pós-guerra, ocupando espaços onde a biblioteca era rara e a livraria, inexistente. Sua circulação atingiu o auge entre os anos 1960 e 1970, quando as bancas de jornal se tornaram vitrines de narrativas de ação, crime e faroeste. Mas, a partir do fim dos anos 1970, começaram a perder força nas capitais, pressionados por transformações no mercado editorial, pelo crescimento da televisão e pelo surgimento de novos modelos de consumo cultural. Ainda assim, resistiram com vigor nos interiores do país, especialmente ao longo da década de 1980. Nas pequenas cidades, nas rodoviárias, nas bancas de esquina e até em armazéns, os bolsilivros continuaram sendo comprados, lidos e trocados por caminhoneiros, lavradores, trabalhadores rurais e leitores solitários de longas distâncias. Nesses territórios, o bolsilivro seguia cumprindo seu papel: circular, entre mãos anônimas, como leitura possível.

Bolsilivros
Antes da Netflix, o faroeste era de papel: a era dos bolsilivros no Brasil

Ao final do século 20, sua presença se tornou residual, um eco empoeirado de uma era em que a leitura popular, ainda que desprezada pelos centros acadêmicos e culturais, encontrava espaço justamente na simplicidade, na regularidade e na força de sua circulação.

A maioria dos textos publicados nos bolsilivros de faroeste era de origem estrangeira, especialmente norte-americana, e formava um catálogo já consagrado de autores como Zane Grey, Louis L’Amour, William Colt MacDonald e Max Brand, que haviam consolidado nos Estados Unidos o western como gênero literário popular desde o início do século 20. Essas histórias, já traduzidas em larga escala na Europa, chegavam ao Brasil muitas vezes via Espanha e Argentina, num vaivém editorial marcado por traduções sucessivas, adaptações improvisadas e cortes feitos ao sabor da conveniência comercial.

Mas o mercado brasileiro, voraz e contínuo, exigia mais do que os catálogos importados podiam fornecer. Surgiu então um modelo de produção local intensivo, baseado na encomenda direta de textos a redatores brasileiros, jornalistas, escritores anônimos ou freelancers com domínio das fórmulas narrativas do faroeste. Esses autores escreviam com cronogramas apertados, muitas vezes produzindo um ou dois romances por semana, sob exigências claras de enredo: ação direta, moralidade rígida, heroísmo viril e um desfecho que restaurasse a ordem.

Para manter a ilusão de origem estrangeira, tida como sinônimo de qualidade e apelo comercial, esses textos eram assinados com pseudônimos anglófonos. Jack Slade, Ben Thompson, Tex Taylor, John Silver, Buck Jones, Logan Stewart: nomes que evocavam o Velho Oeste hollywoodiano, mas que escondiam por trás figuras como A. C. Carvalho, R. F. Lucchetti, Hélio do Soveral, Rubens Francisco Lucchetti, Nelson C. Saldanha, J. B. Martins ou o multifacetado Marcos Rey, sob o nome de Rex Riley, entre outros. Muitos desses escritores atuaram também em revistas policiais, fotonovelas, gibis e roteiros para rádio, demonstrando uma impressionante versatilidade narrativa.

A pseudonímia não era uma exceção, mas o próprio método. As editoras criavam personagens-autores. Jack Slade, por exemplo, podia ser escrito por quatro ou cinco autores diferentes ao longo dos anos, desde que mantivessem o estilo e o perfil moral da narrativa. Esse expediente permitia criar coleções coesas, com um nome fixo estampado na capa, independentemente de quem escrevesse o conteúdo. O autor era tratado como função editorial, não como sujeito criador. O que se vendia era o personagem, a série, a capa, não a assinatura individual.

Essa operação de ocultamento revela tanto a lógica industrial que regia o setor quanto a percepção de que o faroeste precisava parecer importado para ser legitimado. A literatura popular brasileira, mesmo quando escrita aqui, precisava falar com sotaque texano. Foi assim que se construiu, por décadas, uma espécie de ficção nacional disfarçada, uma literatura invisível cujos autores reais só começaram a ser reconhecidos tardiamente, graças ao esforço de pesquisadores e colecionadores que investigaram esse submundo editorial com rigor e afeto.

Por trás de cada pistoleiro solitário havia um escritor solitário, muitas vezes mal pago, empurrando a trama madrugada adentro em máquinas de escrever barulhentas, com café e prazo curto. E por trás da aparente simplicidade dos enredos, havia um sofisticado arranjo de produção cultural que sustentou, com eficiência e silêncio, uma das maiores redes de leitura de ficção no Brasil do século 20.

A linguagem era econômica e seca. As frases eram curtas, com pontuação mínima. A ação era constante. Diálogos vinham em rajadas, e a descrição se limitava ao necessário: a poeira no chapéu, o suor na têmpora, o revólver engatilhado. Havia algo de cinematográfico nesses textos, não porque imitassem o cinema, mas porque compreendiam o tempo de leitura como um tempo em crise. O leitor dos bolsilivros era, na maior parte do tempo, um trabalhador. Lia no ônibus, durante o intervalo do turno ou em casa, à noite, muitas vezes sob uma luz fraca, às vezes à chama vacilante de uma lamparina. Esses livros respeitavam o seu tempo. Começavam direto, terminavam rápido e entregavam o essencial: justiça feita, vilão morto, ponto final.

A força dos bolsilivros de faroeste, contudo, não estava apenas no enredo, mas também na materialidade. As capas, em especial, eram elementos centrais do sucesso editorial. Pintadas com pinceladas intensas, em cores saturadas, traziam ilustrações dramáticas: cowboys empunhando armas, cavalos empinando, rostos em fúria, mulheres em desespero. Eram imagens sensacionalistas, por vezes grotescas, mas irresistíveis. Os capistas, quase nunca creditados, vinham do mercado publicitário ou de gibis e tinham como missão capturar o leitor à primeira vista. A capa era mais importante que o nome do autor, mais relevante que o título, mais decisiva que a sinopse. Muitas vezes, prometia mais do que o livro entregava, mas o leitor, habituado ao contrato informal daquela ficção popular, aceitava a troca.

As bancas de jornal funcionavam como os saloons dessa literatura. Eram os espaços de circulação e negociação, de descoberta e troca. Os bolsilivros não eram objetos de prateleira, mas de balcão. Não eram presentes de aniversário, mas recompensas da semana. O público era majoritariamente masculino, embora houvesse leitoras fiéis. Eram operários, motoristas de caminhão, balconistas, estudantes secundaristas, moradores das periferias urbanas e também leitores do interior. Alguns viviam às margens do asfalto. Outros, onde só se chegava por estrada de terra. Havia quem morasse em pequenas fazendas, cuidando do gado sob o sol forte, guiando cavalos ao passo lento, repartindo a vida entre o curral e a varanda. Para esses leitores, o faroeste não era apenas fantasia. Era reverberação. Havia algo de familiar naquele horizonte de poeira e pólvora, naquela solidão de homem armado, naquela justiça feita à margem da lei. Gente que talvez nunca tivesse entrado numa livraria, mas que reconhecia de longe o cheiro de aventura quando via o número novo da coleção “Faroeste” exposto entre um almanaque de receitas e um horóscopo.

Esse faroeste impresso não era neutro. Embora situado nos desertos da fronteira americana, o subtexto moral das histórias reverberava no Brasil. O xerife honesto e solitário, que se recusava a se corromper, era um contraponto aos representantes da ordem no país. O bandido cruel, que manipulava a cidade pela força ou pelo medo, podia remeter a figuras de poder mais próximas do que se imaginava. E o herói, que resolvia as coisas sozinho, à margem da lei formal, apontava para um desejo de justiça que não passava pelo Estado. Havia, no consumo dos bolsilivros de faroeste, um gesto de imaginação política — inconsciente, mas eficaz. A literatura barata, afinal, não precisava ser explícita para ser incisiva.

O declínio dos bolsilivros começou nos anos 1970. A televisão ganhou espaço nas casas, os quadrinhos ampliaram sua oferta e sofisticação, e as editoras passaram a investir em coleções mais respeitáveis, como a Abril Cultural ou a Nova Cultural. A inflação corroeu o modelo de preço acessível. A circulação nas bancas diminuiu. A fragmentação do público leitor, somada às mudanças tecnológicas, fez com que os bolsilivros deixassem de ser centrais. Mas não desapareceram. Muitos foram parar em sebos, vendidos por centavos. Outros ficaram esquecidos em caixas, relidos com nostalgia. Houve tentativas de reedição, principalmente nos anos 2000, mas sempre como produto de nicho, para colecionadores. O espírito, contudo, permaneceu: nas histórias de cordel, no cinema popular, nos romances de ação autopublicados. O bangue-bangue de papel virou legado.

Hoje, falar dos bolsilivros de faroeste é lembrar de um tempo em que a leitura era leve, rápida, portátil e, sobretudo, possível. Era um tempo em que se podia comprar um livro com o troco do pão e em que a ficção não precisava pedir licença para entrar na rotina das pessoas. Era um tempo em que a justiça cabia em 96 páginas.

O Brasil que leu essas histórias talvez não exista mais, mas ainda pode ser rastreado nos rastros desses livros: nas páginas amareladas dos sebos, nas gavetas esquecidas de velhos armários, nos nomes falsos dos autores verdadeiros que escreviam como se disparassem. Ainda há quem leia. Ainda há quem busque, em papel barato, uma bala justa.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.