Baker, autor de “Red Rocket” e de uma filmografia já comprometida com os cantos opacos da América, retorna com um filme deliberadamente elegante. Em “Anora”, abandona o tom de urgência bruta de seus trabalhos anteriores e assume um estilo de mise-en-scène que beira o preciosismo. A história de Ani — dançarina, acompanhante, filha de ninguém — percorre o já conhecido itinerário da margem, mas por uma estrada pavimentada demais. Ainda que bem construída, a obra tropeça em seu próprio esmero. Há talento, sem dúvida; mas talvez em excesso.
A fotografia de Drew Daniels cumpre um papel decisivo nesse esquema. Banha o clube de strip com luz rosa, artificial como o desejo, enquanto pinta o subúrbio nova-iorquino com um tom desbotado, próximo do cinza mineral. É eficaz, mas também é previsível. Um tipo de beleza ensaiada que, em alguns momentos, mina o impacto que poderia vir do acaso. Há cenas que parecem posadas para um catálogo de solidão urbana, e isso cobra seu preço narrativo.
Quando Ivan Zakharov, filho mimado de um oligarca russo, aparece, a tensão do filme se desloca. Não mais entre o corpo de Anora e os homens que o cercam, mas entre a promessa de ascensão e o cinismo da realidade. Ele não se apaixona por ela, mas por uma performance. Uma mulher que fala russo com sotaque americano e simula fragilidade como estratégia. A química entre Mikey Madison, no papel de Ani, e Mark Eydelshteyn, como Ivan, é truncada, o que poderia ser um trunfo, mas aqui soa como ruído. Eles não conversam, colidem. A artificialidade do casal é deliberada, mas ainda assim desconfortável de acompanhar.
O casamento em Las Vegas é o ápice da farsa. Não por ser cômico, mas por ser inverossímil no limite do plausível. A celebração é menos sobre amor do que sobre pertencimento. Ani é seduzida não por Ivan, mas pelos objetos que ele oferece. O fascínio dela pelos presentes é convincente, mas o roteiro parece perder o fôlego enquanto insiste nesse jogo de espelhos. Há repetições, nos gestos, nas cenas, no simbolismo, que enfraquecem o impacto dramático.
É no terceiro ato que “Anora” respira outro ar. A entrada de Toros, pope ortodoxo e gerente dos interesses da família Zakharov nos Estados Unidos, dá à trama o antagonismo necessário. Interpretado com contenção e autoridade por Karren Karagulian, ele representa uma forma de poder que dispensa gritos. A primeira conversa por telefone com Anora, viva-voz ativado, é um dos momentos mais inteligentes do roteiro. Irônica, cruel, reveladora.
A força de Toros não está apenas na ameaça, mas na convicção. Ele não duvida de que Anora seja descartável e age com base nessa certeza. É essa colisão entre a fé institucionalizada, representada por Toros, e a fé improvisada da sobrevivente, representada por Anora, que move o clímax do filme. Quando os dois dividem o mesmo espaço, a narrativa enfim encontra gravidade.
Mikey Madison carrega o filme com mais competência do que brilho. Sua atuação é sólida, mas nem sempre surpreende. Há momentos de verdade intensa, especialmente nas cenas em que Ani está só, diante do espelho ou de uma janela qualquer. Mas nas interações com Ivan, ela parece confinada a uma gestualidade já conhecida. Há uma contenção emocional que, embora coerente com a personagem, acaba tornando a performance menos memorável do que o prêmio de Melhor Atriz sugeriria. É importante lembrar que Madison ainda está em formação. “Anora” é seu primeiro papel central desde “Era Uma Vez em… Hollywood” e, como tal, revela promessas. Mas não se trata de uma interpretação de ruptura. Trata-se de precisão, e de uma certa frieza.
A vitória de Sean Baker como Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original é mais controversa. Seu trabalho é meticuloso, mas rarefeito. Falta risco. Falta desvio. Falta a imperfeição que dava textura a filmes anteriores. “Anora” se desenha com régua e compasso, e por isso mesmo perde a pulsação. O comentário social está presente, mas sem a ferocidade de “The Florida Project” ou a irreverência de “Tangerine”. Aqui, tudo parece cuidadosamente limpado para não incomodar demais.
E talvez seja esse o maior acerto, ou armadilha, do filme. Ele sabe exatamente o quanto transgredir para ser premiável. E para isso, sacrifica parte do caos que torna o cinema de Baker verdadeiramente vital. “Anora” é, assim, uma obra de transição. De afirmação. Um filme que deseja ser reconhecido, e foi. Mas, ao contrário do que sugerem os prêmios, não é seu melhor trabalho.
No fim, “Anora” é uma narrativa sobre fingir. Fingir que o amor salva, que o dinheiro basta, que a beleza protege. Ani sabe, sempre soube, que nada disso é verdade. E por isso dança. Não porque quer, mas porque é isso que resta. É uma heroína da era do desempenho, feita para existir sob luz artificial. Há grandeza nisso, mas também tristeza. E o filme, embora ciente disso, escolhe emoldurar mais do que atravessar. É belo, sim. Mas a beleza, aqui, é filtro. E filtros envelhecem mal.
★★★★★★★★★★