Martin Scorsese continua a ser o diretor mais personalista de Hollywood. Em seus filmes, sempre há espaço para a sofisticação, ainda que uma violência atávica tenha de eclodir, como se vê em “Cabo do Medo”, a história de um homem cujo desejo insano por reparação o consome, o alimenta e o destrói. Em sua versão para “Círculo do Medo” (1962), de J. Lee Thompson (1914-2002), a partir do roteiro de James R. Webb (1909-1974), Scorsese mescla ordem e caos, beleza e hediondez, obtendo uma história objetiva sem prejuízo do detalhe, da insinuação, o que prova que seu estilo, já primoroso, só fez ficar melhor. Passadas três décadas, o texto de Wesley Strick sublinha as chagas de uma família que atravessava um mar de tensão antes que fosse obrigada a lidar com um algoz que volta para ter sua vingança, provação que os lança a um tempo de descobertas aterradoras, mas necessárias.
Sam Bowden é um advogado indefeso. Antes de ter seu próprio escritório, Bowden fez carreira na Defensoria Pública, onde atuou no caso de Max Cady, condenado pelo estupro de uma menor de idade. Na introdução, o diretor esmera-se em situar quem assiste na atmosfera de pavor da cadeia onde Cady termina de cumprir sua pena de catorze anos, depois de ter aprendido a ler, começando por cartilhas infantis até chegar aos clássicos, livros técnicos de direito e a Bíblia, e cobrir o corpo de tatuagens com versículos das Escrituras. Ele está convencido (e com razão) de que Bowden omitiu detalhes que poderiam tê-lo absolvido, e aos poucos Scorsese aumenta a voltagem, até que se dê o encontro dos dois. Enquanto isso, surgem na trama Leigh e Danielle, a esposa do advogado e a filha do casal vividas por Jessica Lange e Juliette Lewis, a segunda uma vítima em potencial da fúria silenciosa de Cady, diabolicamente sereno em seu exitoso plano de chegar aos Bowden.
Como Thompson já fizera em “Círculo do Medo”, em “Cabo do Medo” Scorsese levanta questões que, valendo-se de impedimentos particulares, tocam assuntos universais a exemplo de justiça, ética, o respeito a certas convenções profissionais e os limites do que pode fazer o Estado para proteger o indivíduo. Esta é uma análise multidisciplinar acerca do que distingue civilização e barbárie, que aponta para uma conclusão pouco animadora: o mal é mesmo uma força da natureza, e poderosa. Nick Nolte e, claro, Robert De Niro ancoram o filme cada qual mirando o ponto de vista antagônico que Scorsese, à Hitchcock, deseja ressaltar, mas De Niro, mais uma vez, monopoliza as atenções. Ter ganho doze quilos de músculos e recoberto o corpo de desenhos rudimentares é apenas uma parte ínfima do que o ator faz por um bom papel. Dá medo, sim, mas ninguém há de dizer que não estimula em igual medida.
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