Aclamado por críticos e fãs de Agatha Christie: o suspense mais subestimado da Netflix Christopher Raphael / Warner Bros.

Aclamado por críticos e fãs de Agatha Christie: o suspense mais subestimado da Netflix

Em 2011, Guy Ritchie decidiu mudar o tabuleiro. Em vez de conduzir Sherlock Holmes por becos vitorianos e enigmas pontuais, o diretor o inseriu num jogo geopolítico à beira do século 20, onde o crime é apenas sintoma — e não causa. “Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras” projeta o detetive para fora do conforto das deduções domésticas e o envolve numa conspiração internacional onde cada gesto parece antecipar uma guerra. A sequência deixa de ser apenas narrativa: torna-se expansão, desvio, desequilíbrio. A lógica precisa de Holmes é posta à prova diante do caos moderno — e nem sempre vence.

Robert Downey Jr., mais contido e mais denso que no primeiro filme, interpreta Holmes como quem carrega o fardo de ainda fazer sentido num mundo que desaprende a esperar. Jude Law, por sua vez, encontra no Dr. Watson uma figura ainda mais interessante: não o ajudante, mas o sobrevivente. Há cansaço na relação entre eles — e também afeto, ironia, dependência. Watson quer se casar. Holmes não aceita. Não por ciúmes, mas porque entende, talvez, que a vida civil não lhe serve. E no meio disso tudo, há trens, explosões, telegramas cifrados, e uma guerra prestes a começar.

A trama se desenrola em 1891, entre atentados anarquistas, alianças instáveis e a iminência de conflitos entre França e Alemanha. Holmes desconfia de uma arquitetura maior por trás dos fatos — e, como sempre, está certo. O professor James Moriarty, vivido com precisão gélida por Jared Harris, é o cérebro por trás do desequilíbrio. Mas sua lógica é diferente. Ele não age por vaidade ou por crime: age por cálculo, por estratégia, por um tipo de racionalidade que transforma a guerra em indústria. É nessa colisão de inteligências — Holmes e Moriarty — que o filme finca seu centro de gravidade. E ali, o solo não é firme.

A direção de Guy Ritchie aposta na estilização sem perder densidade. As cenas de ação, marcadas por slow motions abruptos, ângulos angulosos e cortes quase matemáticos, traduzem não só a estética do diretor, mas também o funcionamento da mente de Holmes. Não se trata de exagero gratuito: há coerência formal entre o que se vê e como o personagem pensa. A trilha sonora de Hans Zimmer segue essa linha, oscilando entre marchas distorcidas e melodias quase espectrais, como se o próprio som desconfiasse do tempo em que está.

A inserção da personagem Simza Heron (Noomi Rapace) — uma cigana envolvida nas tramas revolucionárias — evita os estereótipos mais fáceis. Ela não é musa, nem obstáculo romântico. É alguém que sabe mais do que diz, que age nas bordas do sistema, e cuja presença desloca o centro do conflito. Sua atuação é contida, mas carrega camadas de melancolia e força. Ela não busca redenção, nem proteção. Ela atua — e isso basta.

Entre os méritos mais discretos do filme está a sua percepção histórica. “O Jogo de Sombras” não força a mão nas referências, mas compõe com cuidado uma Europa em tensão. A ideia de que a guerra pode ser provocada como negócio — e não apenas como ideologia — é apresentada com clareza desconcertante. O filme nunca explica demais, mas deixa vestígios suficientes para que se perceba que Moriarty é, na verdade, um arquétipo do século: ele lucra com o colapso.

A relação entre Holmes e Watson segue sendo o núcleo emocional. E talvez nunca tenha sido tão ambígua. Eles se ferem e se salvam. Eles se separam e se perseguem. Holmes joga Mary Morstan — recém-casada com Watson — para fora de um trem. Um ato insano, não fosse pela precisão: ele a salva. O gesto resume sua ética: brutal, mas eficaz. O filme entende isso e não moraliza. Deixa que a lógica — sempre ela — sustente o absurdo.

A ambientação é outro trunfo. As cidades por onde a narrativa passa — Paris, Berlim, Viena — são menos espaços geográficos do que atmosferas políticas. Tudo é névoa, vidro, grafite, combustão. Há uma Europa decadente em cada vitral sujo. A fotografia evita o fetiche da reconstituição de época: prefere sugerir inquietação, movimento, desajuste. Ritchie não quer que o espectador “visite” o passado; quer que ele desconfie dele.

Naturalmente, há excessos. Algumas cenas de ação se estendem além do necessário, como se a forma dominasse momentaneamente o conteúdo. Certas subtramas — especialmente envolvendo a rede cigana — poderiam ter mais desenvolvimento. E a montagem, às vezes, sacrifica pausas dramáticas em nome do ritmo. Mas esses deslizes não comprometem o projeto. Pelo contrário: revelam sua ambição.

No fim, o filme deixa uma sensação estranha — quase filosófica. A vitória de Holmes, se é que se pode chamar assim, não restaura a ordem. O mundo não volta ao lugar. E ele próprio parece entender que sua lógica, por mais brilhante que seja, está perdendo terreno. Moriarty não foi apenas um inimigo: foi um prenúncio. O século 20 se aproxima — e Holmes talvez não pertença a ele.

Filme: Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras
Diretor: Guy Ritchie
Ano: 2011
Gênero: Ação/Mistério
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Fernando Machado

Fernando Machado é jornalista e cinéfilo, com atuação voltada para conteúdo otimizado, Google Discover, SEO técnico e performance editorial. Na Cantuária Sites, integra a frente de projetos que cruzam linguagem de alta qualidade com alcance orgânico real.