Um filme tem seu destino mais ou menos traçado quando vira musical, e foi isso o que se deu com “A Cor Púrpura”. A releitura do clássico de 1985 dirigido por Steven Spielberg é uma festa, marcada pelas performances musicais certeiras, as coreografias esfuziantes e as cores fortes da fotografia de Dan Laustsen. Tanto brilho ofusca o que Alice Walker quis contar no romance homônimo publicado em 1982, uma história de fé e irmandade entre mulheres nos anos que se seguiram à abolição da escravatura no sul dos Estados Unidos. “A vida negra na América é uma oscilação entre alegria e dor”, como afirmou Blitz Bazawule, o diretor da nova versão à época do lançamento, mas há muito mais daquela do que da segunda — e isso não é nada bom. O grande acerto dos roteiristas Marcus Gardley e Marsha Norman é frisar, ainda que de forma muito abrandada, o contexto de abusos sofridos por duas irmãs que só têm uma à outra, e se fiam nisso para tentar viver com alguma dignidade.
Celie e Nettie parecem felizes, isoladas numa terra algo mágica cujo encanto não tarda a se desvanecer. Elas vivem sob o tacão de um pai que estupra Celie e vende os filhos que ela dá à luz, o mesmo tirano que a vende como esposa para Mister, que reproduz o cenário de tortura física e psicológica, exercendo domínio sobre as duas. Numa noite de chuva torrencial, Mister invade o quarto da cunhada e parte para cima dela, e como Nettie resiste, é expulsa. A ruptura forçada é o que define o término do primeiro ato, e Fantasia Barrino e Ciara assumem os personagens defendidos por Phylicia Pearl Mpasi e Halle Bailey na primeira fase, permanecendo como a alma do filme até que surge no enredo uma outra mulher admirável. Sofia, a nora de Celie, é quem a apoia e a incentiva a continuar sua busca por Olivia e Adão, os bebês que seu pai lhe tomara treze anos antes, em 1917. Colman Domingo também proporciona momentos de dramaticidade genuína e natural, sobretudo depois que Mister se apaixona por Shug Avery, de Taraji P. Henson, uma cantora de blues que é a exata negação do que ele deseja numa mulher.
Sofia de fato balança o estranho marasmo narrativo do filme. Ao passo que a passividade de Celie incomoda ao ponto de transformá-la numa antagonista, pela qual o público não consegue torce, a carismática anti-heroína de Danielle Brooks chega a camadas nada óbvias da questão racial americana, contribuindo também para que entenda-se o intrincado entrecho no qual Bazawule leva a trama para a África, para onde acabaram indo Olivia e Adão, na metáfora quase explícita de Walker acerca da Criação e do quão próximas são as origens do povo negro e a da humanidade mesma. Indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, Brooks salva “A Cor Púrpura” do desastre completo, reafirmando a máxima sobre a superfluidade dos remakes — ainda que, passados quarenta anos, o próprio Spielberg tenha novamente se envolvido no projeto, agora como produtor.
★★★★★★★★★★