Celebrarmos Thomas Mann, e seus 150 anos, é falar de alguém que fez um pacto. Com Deus ou com o diabo, não sei. Mas com a palavra, afirmo: sim, ele fez esse pacto. Ainda bem que fez.
Bastaria o louvor para Mann, e não seria excesso. Mas ele exige mais. Nos seus 150 anos, a literatura é chamada, convocada mesmo, a um tipo de reverência que não se satisfaz com a celebração. Temos que seduzir de novo o leitor para dentro do que ele arquitetou, e desafiá-lo. Este ensaio quer saudar o mestre alemão, refazer, com palavras, o movimento que “Doutor Fausto” dramatiza: caminhar ao limite em nome de uma forma elevada de consciência, e voltar marcado.
A escolha de “Doutor Fausto” como obra principal para a homenagem não é segura. É o seu romance mais difícil, intratável até. O mais denso, fiel ao espírito trágico de seu autor. Através de Leverkühn, Mann reescreve o mito faustiano; e o revira, faz dele marca da ferida aberta na Europa, sangrando por duas guerras mundiais. O que está em jogo é a exaltação de um gênio, e a escuta de uma advertência: a beleza pode ser cúmplice da barbárie, o pensamento pode se render ao cálculo, a arte pode trair a vida. Ao leitor que aceita o convite, é concedido o privilégio de ser tomado pela linguagem como se ela tivesse a potência de corromper, salvar, enlouquecer. É disso que se trata. Seduzir, homenagear, desafiar. Como Mann o fez. Como este ensaio tentará, modestamente, ensaiar fazer.
A importância da alegoria na obra de Thomas Mann
A presença da alegoria na obra de Thomas Mann cumpre um papel estruturante e epistemológico. Acalmem-se, eu sei, é um palavrão acadêmico esse, mas, dada a densidade da obra, inevitável aqui. Tentemos explicar: por epistemológico, entende-se o conhecimento adquirido, como ele se justifica e para que o utilizamos.

Doutor Fausto, de Thomas Mann (Companhia das Letras, 624 páginas, tradução de Herbert Caro)
A função da alegoria está vinculada ao esforço de representar um mundo historicamente crítico, em que os sistemas simbólicos tradicionais perderam a capacidade de fundamentar a experiência. Em “Doutor Fausto”, a alegoria é uma forma estética correspondente a um estado de ruína espiritual e civilizatória. O romance encena a decomposição do espírito burguês, da cultura humanista e da racionalidade europeia sob o impacto cumulativo das guerras, da barbárie fascista e da instrumentalização da arte. Trata-se de uma alegoria negativa, consciente de sua condição histórica e da impossibilidade de reconciliação entre forma e verdade.
A narrativa alegórica em Mann encontra precedentes em sua própria trajetória literária. Desde “Os Buddenbrook”, a ideia de declínio é central: ali, como desagregação de uma família; aqui, como colapso de um paradigma civilizacional. Em “Doutor Fausto”, essa representação adquire um nível de complexidade mais elevado, pois a história de Adrian Leverkühn ultrapassa a biografia individual — ela é a dramatização alegórica da cultura europeia em crise. O protagonista torna-se o emblema de uma racionalidade que, ao perseguir a excelência formal e o absoluto artístico, consente na recusa do humano. O pacto faustiano, ressignificado por Mann, representa o processo histórico de autodestruição da modernidade ocidental.
A abordagem teórica de João Adolfo Hansen sobre a alegoria barroca oferece instrumental crítico fundamental para a leitura da obra. A cultura alemã, aliás, é quase toda marcada pelo Barroco. Segundo Hansen, a alegoria é uma forma histórica que surge quando o fundamento metafísico do símbolo se dissolve, restando uma linguagem fragmentária, de ruínas e resíduos. Aplicada a Mann, essa concepção permite compreender “Doutor Fausto” como uma montagem de signos destituídos de transparência ontológica, mas que constrói um discurso trágico sobre a decadência da cultura. A figura do diabo, a doença, a esterilidade, a música dissonante, a frieza intelectual — são elementos que agem como forças de significação alegórica e remetem à crise individual de Leverkühn e ao processo histórico mais amplo que levou à ascensão do nazismo.
A densidade da alegoria faustiana permite interpretar o pacto demoníaco como síntese metafórica da capitulação da inteligência diante da desumanização. A racionalidade tecnificada, a estética desvinculada da ética, a neutralidade do saber diante do sofrimento — tudo é dramatizado na figura do artista que, em busca da obra perfeita, aceita sacrificar o vínculo com o outro. A música dodecafônica, inserida como paradigma composicional do protagonista, expressa a estrutura fria e mecânica de uma arte que comunica, mas prioriza o cálculo. Mann, ao transformar essa operação em literatura, adverte que o inferno moderno é histórico: a forma que a razão adquire quando abandona a alteridade como princípio.
O conceito e a história da alegoria
A alegoria, como forma crítica de leitura e representação, surge em contextos nos quais a linguagem direta se revela insuficiente ou falaciosa. Quando o vínculo entre palavra e coisa se rompe, a alegoria vira forma de expressão; não substitui o símbolo — apenas assume sua falência. Desde a “Psicomachia de Prudêncio”, do final do século 4, até os tratados filosófico-estéticos de autores modernos como Schopenhauer, Nietzsche e Walter Benjamin, a alegoria é a forma de um mundo que não acredita na transparência imediata do sentido. É a linguagem da crise, que atua pela justaposição de signos opacos, que menos representa a verdade, e mais a sua ausência.
A alegoria medieval cumpria uma função pedagógica e teológica. Era a mediação entre o mundo visível e o invisível, o plano terreno e a verdade eterna. Havia uma confiança de base no sistema de correspondências. No Barroco, essa confiança se desfaz. Como mostra Benjamin em seu estudo sobre o drama alemão do século 17, a alegoria barroca deixa de apontar para um além redentor e passa a um mundo saturado de morte, ruína e melancolia. Crânios, relógios de areia, figuras dissonantes e disfuncionais compõem um teatro da finitude. É essa tradição, cética e reflexiva, que Thomas Mann retoma e atualiza em “Doutor Fausto”. Seus personagens abandonam a condição de arquétipos metafísicos — são resíduos de uma história fracassada. A alegoria é operação crítica diante do colapso.
A recriação do mito faustiano realizada por Mann distorce e aprofunda suas versões anteriores. O pacto com o diabo não significa a transgressão individual; é adesão a um modelo de racionalidade desumanizada. Em Marlowe e Goethe, o pacto é ato dramático do indivíduo que desafia os limites morais do saber. Em “Doutor Fausto”, é um gesto coletivo e histórico, intelectualizado e estetizado, cuja consequência é o esvaziamento do outro, a frieza diante da vida, a conversão da arte em instrumento de poder.
A alegoria torna-se crítica da estética, denúncia da vocação sublime que ignora o sofrimento. A modernização da alegoria em Mann, por meio da erudição e da paródia, se faz singular. Seu romance desloca o mito faustiano para o interior de uma cultura em colapso, tornando-o figura de uma história recente: a da Alemanha entre 1885 e 1945. As referências filosóficas, teológicas e musicais, que ofereciam síntese, passam a gerar tensão. O sublime não terá a função de redimir: sua tarefa será a de condenar. A alegoria em Mann não aponta para o céu ou qualquer instância superior — ela descreve o que se perdeu. O pacto torna visível a destruição do humano em nome da forma. O romance termina encorpando uma espécie sui generis de oração: talvez devesse ser visto como uma prece sem interlocutor. A alegoria pode não salvar, não restituir sentido; porém, testemunhará — será força motriz de qualquer narrativa que dela fizer uso.
O lugar de Doutor Fausto na obra de Mann
A transição entre “A Montanha Mágica”, de 1924, e “Doutor Fausto”, de 1947, é a descrição de uma ruptura decisiva na trajetória intelectual e literária de um gênio. No primeiro romance, a doença é metáfora de uma crise cultural em suspensão, interlúdio filosófico às vésperas do colapso histórico; no segundo, dispositivo ativo, convocada e deliberadamente cultivada como vetor da criação artística. Adrian Leverkühn adoece por escolha, em nome de um ideal estético. Observa-se uma mudança de registro: da análise de uma civilização doente para a encenação de um jogo autodestrutivo consciente, sistemático e irreversível.
A ética de “Doutor Fausto” é mais dura, dispõe de menos ironia, por isso é mais desesperada. Não há, em toda a obra de Mann, um romance tão denso, filosoficamente estruturado e profundamente desencantado quanto “Doutor Fausto”. A crítica à Alemanha, longe de qualquer maniqueísmo ou panfleto, tem a forma de uma investigação clínica. A narrativa examina o vínculo entre o gênio artístico e o colapso ético, o culto à forma e a barbárie histórica. Leverkühn é construído como sintoma. É o produto e a projeção de uma cultura que escolheu o sublime em detrimento do humano. O romance faz uma autópsia amorosa da tradição alemã, conduzida por um autor que a conhece por dentro e a denuncia com agudeza, bem ao gosto do temperamento amargo, duro e ruidoso de Thomas Mann.
A figura de Serenus Zeitblom, narrador e biógrafo de Leverkühn, é vital nessa construção. Representante do humanismo clássico, católico, hesitante e anacrônico, Zeitblom registra os acontecimentos com a consciência de sua impotência. Não compreende inteiramente o amigo ou compartilha de sua visão de mundo, porém é o único que permanece, e o único que escreve. Escreve em voz frágil, marcada pela culpa e perplexidade, com a urgência de preservar, em palavras, a memória do horror. Mann constrói, nesse narrador, um triunfo de técnica, um espetáculo, a figura do intelectual que sobrevive à catástrofe e sabe que sua função é testemunhar mais e explicar menos. Escrever é gesto ético de resistência à amnésia.
O romance é estruturado como um cerco à ideia de genialidade, idealismo musical, humanismo burguês e à possibilidade de redenção artística. Não se trata de perguntar se a arte salva: ela participa da ruína. A resposta de Mann é inequívoca. Participa, sim. A Alemanha de Leverkühn, com sua obsessão pelo absoluto, cedeu ao delírio totalitário. O artista, ao isolar-se da vida comum em nome da perfeição formal, é cúmplice do inumano. Em “Doutor Fausto”, o gênio que queria ser o Goethe moderno explicita sua desconfiança radical diante do idealismo estético: a música de Leverkühn, como a cultura que a gerou, é lógica e estéril. A forma perfeita é o indício da catástrofe.
O lugar de Doutor Fausto no século 20
A densidade crítica e formal de “Doutor Fausto” é o principal vetor da experiência histórica, intelectual e espiritual do período. O romance condensa elementos da música moderna, da história política europeia, da filosofia da cultura, da teologia, da psicopatologia e da crítica da razão. A estrutura se faz por alternâncias de tom e uma composição polifônica que remete à lógica musical de uma fuga de Bach atravessada pela dissonância da linguagem dodecafônica. A obra incorpora as tensões do mundo que pretende representar. O século 20 é pano de fundo e matéria trágica.
“Doutor Fausto” é uma resposta literária ao colapso que culminou na ascensão do nazismo. O romance propõe uma leitura estrutural, íntima da barbárie: o mal é gerado no interior da cultura. Não há ruptura entre o espírito e a catástrofe; há continuidade. A adesão ao inumano é apresentada como resultado de um processo estético, filosófico e espiritual. O sujeito moderno, ao absolutizar o conhecimento e a forma, abdica da alteridade e da responsabilidade. O romance é o antinazismo filosófico: desmonta o idealismo germânico e sua trajetória até o totalitarismo, sem recorrer à denúncia direta ou à condenação superficial.
Publicada em 1947, virou testamento de fim de época, aproximando Mann da estética de Proust. “Doutor Fausto” seria uma espécie de irmão mais novo de “Em Busca do Tempo Perdido”, compartilhando igualmente uma estrutura musical e testemunhando o declínio de uma era, marcada, no caso de Proust, pela Primeira Guerra Mundial. Vale ressaltar a marcante diferença estilística dos dois, distantes esteticamente, embora sejam, em sua altura, supremos da melhor literatura que se produziu no século 20, junto com James Joyce, Franz Kafka, Borges, Cortázar, Guimarães Rosa e Robert Musil.
Escrito no exílio, após o término da Segunda Guerra Mundial, o livro fala para uma Europa devastada fisicamente e espiritualmente. A figura de Leverkühn, genial e estéril, representa essa Europa: tecnicamente sofisticada, culturalmente refinada, incapaz de impedir sua autodestruição. O diabo deixa de ser entidade mitológica para ser metáfora do cálculo absoluto, da abstração que elimina o humano em nome da pureza.
Na mesma época em que Adorno escrevia “Minima Moralia”, com a alça de mira apontada para a articulação de uma ética mínima possível após Auschwitz, Mann elaborava uma narrativa na qual a razão instrumental se converte em linguagem musical: bela, fria, devastadora.
A dodecafonia, inserida no romance para ser signo da modernidade estética, expressa a desumanização fruto da subordinação da experiência à lógica formal. A música de Leverkühn é a trilha musical do desencanto. “Doutor Fausto” é sobre fracassos — dentre eles, o do Iluminismo. Sem ser uma recusa da razão, é sua crítica radical. Ao fazer da arte o campo em que se encena o pacto com a morte, revela um século 20 em que a cultura se voltou contra si mesma.
A alegoria na obra: por que é usada, como, as características do uso, os seus resultados
Mas não nos enganemos: a alegoria não organiza a narrativa de “Doutor Fausto”. É um romance construído sobre a recusa da linearidade e da explicação direta. Vai na direção de correspondências opacas, com camadas de sentido que se revelam por acumulação e deslocamento. O mal, na obra, é tematizado, inscrito em figuras recorrentes: o pacto, a sífilis, a frieza intelectual, a renúncia erótica, a fragmentação da linguagem musical. Essas figuras são como signos alegóricos de uma desintegração histórica. A estrutura alegórica permite representar o ininteligível: o mal absoluto, uma lógica de degradação que se infiltra na arte, no pensamento e na linguagem.

Adrian Leverkühn é a figura alegórica do artista moderno radicalizado. Sua trajetória é construída sob o véu de um mito invertido, e os elementos da tradição faustiana são reconfigurados em chave paródica.
Ascético, isolado, messiânico e estéril, Leverkühn é a fusão da genialidade formal e da desintegração subjetiva. Sua música, inovadora, intelectualmente sofisticada, não tem pathos. Não redime, não afeta, não comunica. Leverkühn tem traços de construção crítica e poucas nuances comuns na composição de um personagem: um modelo de artista erguido sobre a negação da emotividade e do sentimento de pertencimento ao coletivo; artista para o qual a arte é valor supremo, mesmo ao custo da humanidade.
O demônio de Mann é construído com os andaimes da teoria alegórica em estado de graça. Não exala maldade pela saliva e fica longe do espetáculo do mal sobrenatural. O diabo que visita Leverkühn tem gestos irônicos, linguagem ambígua, aparência comum. Não se impõe, opta por convencer. A estratégia alegórica é deliberada: representa o mal desprezando a possibilidade da razão moderna. O pacto renuncia a uma violação de um código moral, vira aceitação de um princípio — crença de que a esterilidade pode ser força, e o isolamento, superioridade. Vemos como o sacrifício da empatia é condição para o gênio. A alegoria se torna estrutura de camuflagem, revela e disfarça, inscrevendo o inumano na sintaxe da promessa estética.
Este romance, ao seguir a lógica musical e polifônica, dá à alegoria cor estrutural. Os personagens têm função temática específica, como vozes de fuga; cada cena é uma variação sobre um motivo dominante: o desmoronamento progressivo da subjetividade. A alegoria está no conteúdo, no desenho narrativo: fragmentado, cíclico, densamente intertextual. Livro com feições de alegoria total, na qual forma e conteúdo se implicam ao mesmo tempo. A unidade não é obtida pela linearidade causal, mas por uma sobreposição de signos, entrelaçamento de temas, tensão entre discurso e colapso. A alegoria interpreta o mundo, incorporando-o como enigma.
A representação da história na literatura de Doutor Fausto
A biografia de Adrian Leverkühn condensa os traços centrais da experiência alemã entre o fim do século 19 e a derrocada de 1945. É uma composição complexa, em que infância, formação, doenças e decisões do protagonista estão articuladas aos processos históricos e culturais de um país e de um povo; mais ainda: de um espírito. Os deslocamentos biográficos correspondem a momentos de inflexão da nação. O romance não faz uso da crônica factual e muda a rota: escolhe inscrever a história como drama interior. Os sintomas do colapso coletivo aparecem como crises subjetivas do corpo, da linguagem, da arte.
Mann organiza a temporalidade por justaposição e recursividade. Os eventos são dispostos em espiral, com retrocessos, antecipações e digressões. A memória surge como fio condutor, intercalando relatos e reflexões. A história tem uma atmosfera que envenena os personagens. A decadência é estabelecida por saturação: acumula-se em silêncios, decisões omitidas, escolhas adiadas. O leitor não acompanha uma evolução — assiste a um naufrágio. É a apoteose das histórias de decadência e de fim que marcam a trajetória inteira de Thomas Mann.
Os acontecimentos políticos, mesmo que mencionados, não são tematizados, pelo menos não de maneira direta. Ouvimos os ecos: reuniões universitárias, falas infladas, gestos de autoridade, suicídios de alunos. Tudo aparece esmaecido: é indício, não fato central. A história nacional se dilui, se mistura e se funde no processo de decomposição de Leverkühn. A doença, ao consumi-lo física, mental e eticamente, é a forma narrativa que exprime a situação da Alemanha. A política é esboçada com traços de um sintoma do esgotamento de uma cultura, movendo a narrativa, atravessando-a, tornando-se ruído de fundo de uma intensidade corrosiva.
Serenus Zeitblom, quando se põe a escrever sob as cinzas da derrota, torna-se a tentativa derradeira de atribuir sentido ao que foi perdido. Sua escrita chega tarde, carrega o peso da vergonha e é marcada pela culpa e urgência de preservação. Registra os eventos, tenta salvar pedaços de um mundo destruído. Ao contar a vida de Leverkühn, recupera a ideia de cultura, consumida por sua cumplicidade com a barbárie. Seu lamento é claro: o humanismo não impediu a catástrofe. A música, signo de liberdade, foi usada para legitimar o extermínio. A escrita é o que resta: uma vigília entre os escombros.
Thomas Mann: a mudança de ideia entre as guerras
Durante a Primeira Guerra Mundial, Thomas Mann foi defensor da Kultur alemã. Adotou um discurso nacionalista e conservador que via na cultura germânica um patrimônio espiritual superior às democracias liberais ocidentais. Essa posição está registrada em seu ensaio “Considerações de um Apolítico”, no qual opõe a profundidade da arte alemã à frivolidade do mundo burguês racionalista. Mas o colapso da Alemanha imperial, o trauma da guerra, a ascensão do nacional-socialismo e, principalmente, o exílio forçado nos anos 1930 provocaram uma mudança em sua visão de mundo. Como observa Demartini Nunes, Mann converte-se a uma ética republicana e passa a defender os valores do Estado de Direito, da democracia parlamentar e da racionalidade crítica. Sua conversão foi resultado de um processo doloroso e trágico de revisão de valores.
A divergência pública com seu irmão Heinrich Mann, que foi mais atento e rápido na crítica ao autoritarismo, defendendo ativamente a República de Weimar, expôs uma fratura que ultrapassa o âmbito familiar: a tensão entre literatura e engajamento político. Enquanto Heinrich assumia posições abertamente democráticas nos anos 1910, Thomas hesitava. Essa hesitação foi literariamente produtiva. A lenta, mas consistente, transformação de Thomas Mann permitiu-lhe dar forma ficcional a dilemas éticos e políticos com uma profundidade rara, utilizando-se de estruturas sempre a serviço de um amálgama entre forma e conteúdo com toques de perfeição, que são capítulos à parte na história da Literatura. “Doutor Fausto” representa o ponto culminante desse processo: é uma reconfiguração da forma romanesca para dar conta da falência do espírito burguês e da cumplicidade da cultura com o totalitarismo.
O período de exílio nos Estados Unidos foi decisivo nessa transição. Os contatos com a intelectualidade exilada, especialmente com Theodor W. Adorno, a correspondência, os registros nos diários e as conferências proferidas em Princeton revelam um autor em revisão de suas posições, jamais vítima de certezas — como só os ingênuos o são.
Mann não renuncia à tradição cultural alemã — ele reafirma sua grandeza —, mas recusa o triunfalismo. A Alemanha não será vista como pátria espiritual; ganhará algo maior em sua vida intelectual: será o terreno da tragédia. O amor ao país transforma-se em crítica. A erudição celebratória é de tom acusatório. Ele havia louvado a profundidade trágica da alma germânica, passa a se perguntar sobre o preço histórico dessa interioridade estetizada.
“Doutor Fausto” é uma confissão, e elabora a consciência tardia de que a beleza dissociada da ética pode ser cúmplice do mal. A estética da autonomia, a crença na arte como valor em si, é perigosa diante de uma história marcada por genocídio e destruição. O romance narra o pacto de Leverkühn com o diabo e dramatiza o pacto silencioso que muitos intelectuais, inclusive o próprio Mann, fizeram com a abstração, a neutralidade e o idealismo. Temos uma surpreendente virada ética: a constatação de que a omissão, em tempos de crise, é também uma escolha — e que, diante da barbárie, só a denúncia é legítima.
A concepção de tempo e temporalidade em Doutor Fausto
A temporalidade empregada nesta demonstração de força e domínio técnico narrativo completo diverge da linearidade tradicional do romance do século 19, especificamente do romance burguês, objeto constante da crítica de Thomas Mann em sua obra inicial. O tempo, nesse contexto, afasta-se de sua função tradicional de conduzir à redenção ou síntese, direcionando, em vez disso, o enredo à estagnação e à decomposição. A radicalidade da decadência sugere que as experiências anteriores de Mann como autor convergem neste projeto altamente sofisticado, que demandará humildade e modéstia, aliadas a um estudo aprofundado e à disciplina por parte do leitor.
Inicialmente, Zeitblom demonstra sua intenção de estruturar uma narrativa coesa. Paradoxalmente, seus esforços revelam-se infrutíferos, pois o narrador peculiar é gradualmente dominado, senão pelo tempo e pelo calendário, pela vã tentativa de preservar a sequência dos eventos, enquanto o tempo interno, que se prolonga, que reitera os mesmos gestos e se concentra em seus próprios vestígios, manifesta-se com perfeição. Utilizando-se de técnica e engenhosidade singulares, a obra amalgama o tempo aos temas e à estrutura, com perfeição e audácia capazes de provocar até mesmo um estado de epifania em um proustiano obcecado por Heidegger e Ricoeur. A cronologia serve como estrutura, mas o ritmo e a apresentação das ações são ditados por uma cadência de degeneração, e o tempo, conforme a perspectiva de Aristóteles em sua “Física”, deixa de ser desenvolvimento e se transforma em consumo, corrosão, decomposição, além de doença e morte. O romance se distingue por uma percepção temporal que se abstém de projetar significado, escolhe o esvaziamento da duração. Antecipa-se um período de enfermidade, assemelha-se ao corpo de Leverkühn: um tempo contaminado, dantesco, caracterizado pela sua incapacidade de gerar transformação, similar à estagnação da alma e dos defeitos, tal como se observa na maior das punições no “Inferno” de Dante: nada, nem ninguém, muda no inferno.
A construção formal da narrativa reforça essa concepção temporal. As digressões constantes, os retornos a eventos narrados, as inflexões filosóficas que interrompem o fluxo dos fatos, contribuem para a dissolução da ilusão de um tempo contínuo. Essa dissolução encontra paralelo na opção estética de Leverkühn: a música dodecafônica, ao rejeitar a tonalidade e a harmonia clássica, fragmenta o tempo sonoro, transformando-o em tensão permanente, sem resolução. Do mesmo modo, o romance surge como fuga dissonante, nunca atingindo um repouso narrativo. A experiência da leitura torna-se a vivência da crise da temporalidade: o leitor, como o narrador, é lançado num presente esticado, sente-se assombrado por um futuro que se cumpriu e por um passado sem perdão. “Doutor Fausto” é a tentativa de narrar o colapso da própria noção de tempo histórico.
O papel da teoria dodecafônica e a importância de Adorno na criação da obra
O diálogo entre Thomas Mann e Theodor W. Adorno na concepção de “Doutor Fausto” ultrapassa os limites da consultoria técnica para tornar-se um exemplo de coautoria intelectual.
Adorno forneceu a Mann informações sobre a técnica dodecafônica, os debates estéticos da música moderna e um aparato conceitual inteiro que permitiu ao romancista configurar Adrian Leverkühn como a encarnação do esgotamento da subjetividade artística diante da racionalização da forma. A dodecafonia, obra de Arnold Schoenberg, é uma das indicações de uma modernidade que, ao abandonar o centro tonal e submeter a composição à serialidade matemática, transforma a música em ato de controle estéril. Mann, sob influência direta de Adorno, faz dessa técnica alegoria maior de um espírito da época: a música rejeitando a emoção, o compositor prescindindo do corpo, a estrutura dominando, anulando a espontaneidade. O romance deixa isso claro no célebre trecho em que Leverkühn, em seu delírio final, confessa: “Em nossos dias, nada pode mais ser simples. […] O coração não pode mais cantar”. A tradução de Herbert Caro acentua o pathos negativo, já que mantém o registro grave e encurtado do discurso de Adrian: nessa escolha do tradutor, Caro revela a exaustão da subjetividade, amalgamada à sofisticação da técnica. A dodecafonia vira uma metáfora total: a razão que se autonomiza a ponto de negar a vida. Adorno, em seus escritos estéticos, advertia para esse risco da razão instrumental. Em “Doutor Fausto”, essa advertência é levada ao palco da narrativa. A personagem e sua obra não são julgadas por sua eficácia formal; o que está em jogo é a falência existencial. A colaboração entre o filósofo e o romancista legou-nos uma crítica contundente da cultura ocidental que, ao perseguir a perfeição formal, abriu caminho para o totalitarismo e para a destruição da alteridade e da empatia.
Lendas e traumas pessoais de Mann alegorizados no livro. A lição de Doutor Fausto
“Doutor Fausto” representa um marco e um aviso sobre os riscos perenes que a humanidade enfrenta. Ao analisar as biografias de Thomas Mann, observa-se que este desafio constante à inteligência de um gênio também funciona como uma confissão codificada de um escritor em conflito com sua formação estética, moral e emocional. Em Adrian Leverkühn, Thomas Mann alegoriza a figura do artista alemão seduzido pela abstração e pela grandiosidade técnica, projetando, simultaneamente, seus próprios dilemas: o distanciamento emocional, o celibato funcional, a aversão à vulgaridade e o fascínio pela elevação intelectual como forma de escapar do humano em excesso. A construção da personagem é indissociável da autoimagem do autor: Mann, introspectivo, reservado e convicto da superioridade da arte, percebe tardiamente que a sublimação da vida em nome da forma pode conduzir à esterilidade afetiva e moral. Leverkühn é o duplo trágico de Mann: um artista que optou pelo absoluto e perdeu o contato com a alteridade.
O romance transcende a introspecção, condensando os traumas coletivos da Alemanha moderna, a humilhação pós-1918, o ressentimento enraizado no nacionalismo e a racionalização que culminou no Holocausto. A loucura de Leverkühn, no desfecho da narrativa, assume dimensões biográficas, históricas e simbólicas.
Em um dos trechos mais impactantes, Adrian declara: “Senhores, de futuro, declino”. Essa é a abdicação da redenção, recusa final do humanismo como possibilidade. Essa renúncia representa o ápice e o ponto mais crítico do romance. Mann não propõe soluções; oferece uma autoimagem coletiva, compelindo o leitor à reflexão. A principal lição de “Doutor Fausto” ignora a moral, afasta-se do religioso e desconsidera a estética: sua lição é trágica. O livro demonstra que a grandeza pode ser a origem da ruína, que a beleza pode ser desumana e que o intelectual, sem empatia, é guia para o abismo.
A leitura deste romance proporciona imersão na desconfortável compreensão de que a cultura não é redentora e pode conduzir à decadência. Resta a escrita de Zeitblom, vacilante, porém essencial, como se Mann estivesse a afirmar: após a barbárie, resta a humildade de criar, escrever, traduzir, pintar, testemunhar o que se deu e por isso se perdeu, negando qualquer consolo, com o objetivo de relembrar, para que nunca mais se repita.