Nem toda estreia de catálogo chama atenção de imediato. No caso da Netflix, esse efeito é amplificado pelo volume: dezenas de títulos chegam ao serviço a cada mês, tornando o reconhecimento quase uma questão de sorte. Mas nos últimos meses, cinco produções conseguiram sobressair — não pelo marketing ou pelo formato, mas pela solidez do que oferecem. Cada uma, à sua maneira, aposta menos na aparência e mais na construção. É um grupo variado: há sequência inesperada de clássico cômico dos anos 1990, adaptação de caso real ocorrido em 1939, novo capítulo de uma franquia de terror com leitura crítica da fama, drama coreano sobre a experiência urbana contemporânea e um filme independente americano de perfil biográfico. O que une essas obras não é o gênero ou a origem, mas o compromisso com o material.
“Um Maluco no Golfe 2”, lançado em julho, recupera o personagem de Adam Sandler quase três décadas depois e surpreende ao optar por um roteiro centrado na paternidade, com ritmo mais contido que o habitual. Já “Perdido na Montanha”, que também chegou ao catálogo este mês, reconta a história de Donn Fendler, garoto de 12 anos perdido no Monte Katahdin em 1939, com rigor de reconstituição e uma fotografia que evita a espetacularização. Em “Smile 2”, a entidade do primeiro filme retorna, mas agora dentro do universo de uma popstar, o que permite ao diretor Parker Finn tensionar o conceito de visibilidade e trauma em ambiente de alta exposição.
O drama sul-coreano “Meus 84 m²”, recém-incluído na plataforma, investiga o impacto psicológico da falta de espaço e mobilidade social em uma família de classe média. É um filme silencioso, mas formalmente muito controlado. E em “Bob Trevino Likes It”, destaque do circuito de festivais antes de estrear no streaming, a diretora Tracie Laymon transforma sua própria vivência pessoal em ficção intimista, com dois personagens que constroem, lentamente, um vínculo afetivo inesperado. Nenhum desses filmes vem com a promessa explícita de sucesso. Nenhum busca viralizar. Mas todos demonstram controle de linguagem, clareza estética e, sobretudo, integridade naquilo que se propõem a fazer. O resultado é discreto — e, por isso mesmo, mais digno de atenção.

Em um apartamento minúsculo nos arredores de Seul, uma família de três pessoas tenta preservar seus laços diante do esgotamento físico e emocional provocado pela vida urbana. A trama é construída com foco nos silêncios, nas repetições da rotina e nos conflitos velados que emergem quando o espaço se torna escasso e os desejos individuais, inadiáveis. A adolescente da casa, em especial, vive o dilema entre gratidão familiar e aspirações pessoais, tornando-se o centro de uma tensão crescente e contida. A fotografia enfatiza os corredores apertados, os ângulos fechados e a convivência forçada como linguagem visual da opressão cotidiana. A obra se ancora em dados sociais sobre desigualdade imobiliária e precarização da vida urbana na Coreia do Sul, utilizando-os como pano de fundo realista sem soar didática. O resultado é um drama sutil, preciso e emocionalmente envolvente, que converte o microespaço em espelho de uma condição social e psíquica mais ampla.

Anos após sua aposentadoria, um ex-golfista excêntrico e impetuoso decide voltar aos campos para ajudar a filha a ingressar em uma escola de balé prestigiada. A continuação aposta menos no humor escancarado do passado e mais na construção de vínculos familiares. O roteiro equilibra o tom farsesco com momentos de ternura, sem perder a irreverência típica da franquia. Participações de astros reais do esporte, como Rory McIlroy e Travis Kelce, e o retorno de personagens clássicos, oferecem um elo entre nostalgia e renovação. A trilha sonora revisita o rock e o hip hop noventistas com acento contemporâneo, reforçando o contraste entre gerações. A direção entrega ritmo ágil, montagem eficiente e gags visuais criativas, mas é a performance central — afetiva e contida — que transforma a comédia em uma reflexão bem-humorada sobre amadurecimento e legado. A Netflix entrega aqui não apenas uma sequência, mas uma atualização surpreendentemente sensível do que antes era apenas pastelão esportivo.

Inspirado em fatos reais ocorridos em 1939, o filme acompanha um menino de doze anos que se perde em uma trilha no Maine e sobrevive sozinho por nove dias em meio à floresta. O roteiro evita o heroísmo artificial e opta por um retrato seco e meticuloso da luta por sobrevivência, alternando cenas de silêncio e exaustão com lembranças familiares que pontuam a resistência emocional. A reconstrução do desaparecimento e das buscas mobiliza múltiplas camadas de tensão: familiar, social e histórica. A fotografia favorece o contraste entre a vulnerabilidade infantil e a hostilidade da paisagem. A atuação do jovem protagonista é o eixo emocional da narrativa, sustentando o realismo com contenção e veracidade. O trabalho de pesquisa documental, evidente em detalhes logísticos e na ambientação de época, fortalece a confiabilidade da abordagem. Mais do que um drama de resistência física, a produção se firma como estudo humano sobre instinto, medo e esperança. Uma obra sóbria, honesta e tecnicamente rigorosa.

Uma estrela pop em ascensão começa a ser assombrada por uma entidade sobrenatural enquanto lida com a pressão da fama e traumas mal resolvidos. A sequência do terror psicológico de 2022 expande o universo do original sem repetir suas fórmulas, apostando em tensão mais atmosférica do que explícita. A protagonista — uma celebridade perseguida tanto pela indústria quanto por uma maldição sorridente — serve como veículo para uma crítica incisiva à exposição pública e ao colapso da subjetividade. A direção trabalha com precisão o uso do som, da montagem e da distorção da realidade, criando uma experiência audiovisual inquietante. A performance principal é densa, física e emocionalmente carregada, sustentando o enredo com credibilidade dramática. O projeto se distancia do mero susto e se aproxima de um retrato simbólico da autodestruição moderna, transformando pavor em comentário social. O resultado é uma continuação madura, que respeita o material original, mas arrisca e cresce com inteligência.

Uma jovem texana decide confrontar o passado ao romper definitivamente com o pai abusivo e ausente. Em meio à dor, publica um relato pessoal nas redes sociais — e é surpreendida ao receber apoio de um estranho com o mesmo nome de seu pai biológico. É assim que Lily, vivida com notável sensibilidade por Barbie Ferreira, conhece um homem chamado Bob Trevino Jr. (John Leguizamo), cuja gentileza e empatia acabam preenchendo o espaço emocional deixado pela rejeição paterna. A direção de Tracie Laymon, baseada em sua própria história de vida, trata o material com sobriedade e afeto, evitando sentimentalismo excessivo. Com roteiro estruturado em torno de pequenos gestos de cuidado e escuta, a obra propõe uma reflexão madura sobre paternidade, identidade e os vínculos que escolhemos formar. A abordagem evita arquétipos fáceis ou redenções forçadas, optando por retratar uma amizade verdadeira e gradual. O projeto foi destaque no SXSW 2024, elogiado por sua autenticidade narrativa e pela delicadeza com que transforma uma experiência traumática em cinema comovente e honesto.