Quando Jamie Foxx sofreu um AVC durante as filmagens de “De Volta à Ação”, em abril de 2023, a lógica mais previsível da indústria — aquela que substitui sem hesitar — parecia prestes a se cumprir. Mas Seth Gordon, diretor conhecido por comédias como “Quero Matar Meu Chefe”, não seguiu o protocolo. Não escalou outro ator. Não deu por encerrada a produção. Esperou. Foram nove meses de um hiato involuntário, preenchido por especulações, silêncio e reabilitação. Ao final, o que poderia ter sido apenas mais uma comédia de ação genérica tornou-se, acidentalmente, um registro da própria persistência.
Foxx retornou ao set em janeiro de 2024, discreto, comedido, inteiro, e visivelmente alterado pela experiência. No filme, interpreta Matt, um ex-agente secreto relutante convocado para uma missão tão inverossímil quanto qualquer outra que envolva a salvação da América. A narrativa, por mais absurda que se pretenda, ecoa o subtexto real que o filme jamais explicita, mas também jamais abandona: há um corpo que resistiu, há um homem que quase não voltou.
A presença de Cameron Diaz, em seu primeiro papel desde 2014, reforça esse estranho pacto de retorno. Sua personagem, Emily, parece partilhar do mesmo cansaço que Foxx, cansaço cênico e metafísico. Juntos, compõem uma dupla que rejeita o romantismo, o heroísmo e até mesmo a lógica interna do roteiro. Não se trata de desdém pela narrativa, mas de um tipo específico de desconfiança. A química entre eles não é de sedução nem de conflito, mas de sobrevivência compartilhada. Eles não agem como personagens que voltaram a acreditar; agem como quem sabe que não há no que acreditar.
A estrutura do filme se fragmenta com um gosto quase performático. Há uma cena de perseguição de carro, seguida de um pedido por fast food, interrompida por uma explosão; depois, uma luta com espadas digna de “Star Wars”. Nada faz muito sentido, e esse é o motor secreto da obra. “De Volta à Ação” não almeja coesão, muito menos transcendência. Em vez disso, entrega um tipo de colagem instável, onde a comédia de erros e o cinismo absoluto operam como força centrífuga.
Brendan O’Brien, corroteirista do longa, parece ciente do terreno que pisa. Seus roteiros anteriores já demonstravam aptidão para escorregar entre a paródia e o escracho, mas aqui ele vai além, e o filme agradece. Não há compromisso com convenções de gênero, tampouco com a sensibilidade contemporânea. O resultado não é ofensivo nem provocativo. É apenas estranho, irregular, e em muitos momentos involuntariamente sincero.
Seth Gordon dirige com um misto de irreverência e descompasso. Há cortes abruptos, transições toscas, passagens que soam mal montadas. Seriam erros? Talvez. Mas em um filme como esse, cada falha parece integrar a lógica do projeto. A forma acompanha o conteúdo no seu desequilíbrio. A narrativa se desmancha aos poucos, mas o que permanece é o gesto, ou melhor, o fato de que ela insiste em continuar.
E no centro de tudo, Foxx. O Jamie Foxx de “Ray” não desapareceu, mas algo nele mudou. Ele já não atua para mostrar alcance, mas para estar ali. O corpo em cena, mesmo quando faz piada, mesmo quando atira lança-chamas, parece informar outra coisa: uma gravidade subterrânea que não se presta ao espetáculo. Cada fala é dita com o cuidado de quem sabe que poderia não tê-la dito. A performance é discreta, contida, e por isso mesmo impressionante. Há uma dignidade bruta no modo como Foxx ocupa a tela, uma espécie de calma tensa, de presença sem ênfase.
Cameron Diaz responde a esse estado com uma leveza levemente irônica. Sua atuação não pede atenção, não exige o centro. A graça de sua Emily está justamente na recusa à grandeza. Ela não volta para brilhar; volta porque, talvez, não tenha mais nada a perder. Isso, que poderia soar cínico, transforma-se em uma honestidade rara. Em vez de reviver fórmulas, a dupla central parece determinada a desmontá-las em tempo real.
“De Volta à Ação” não é um grande filme, nem tenta ser. É uma obra deslocada, imperfeita, cheia de pontas soltas. Mas há algo nela que escapa à obviedade crítica: a beleza de continuar mesmo quando nada garante o sentido. Em tempos de narrativas calibradas até o último frame, a irregularidade do filme resiste como uma forma de autenticidade. Não como gesto revolucionário, mas como sintoma.
A duração é de 114 minutos. A trama vai e volta sem pressa. A direção oscila. O humor falha. A ação repete-se. Mas há Foxx, e isso, por ora, basta.