Talvez tenha começado com Bartleby. A recusa dele — “preferia não” — não é uma negação direta, mas um sintoma de exaustão. A economia de palavras esconde a indisponibilidade para o mundo, a indisposição em simular. O personagem de Melville já não reconhece o gesto de querer.
Em “A Metamorfose”, de Franz Kafka, a ansiedade não espera o segundo parágrafo. Gregor Samsa acorda de sonhos inquietos e descobre que não é mais o mesmo. A transformação, embora absurda, é tratada com um imediatismo quase administrativo. Há prazos, compromissos, cobranças. O corpo se desfaz; a lógica social permanece. Kafka revela não apenas a angústia do sujeito moderno, mas o funcionamento intacto da opressão mesmo diante da ruína.
Stephen Dedalus, em “Retrato do Artista Quando Jovem”, pensa como quem febrilmente tenta seguir o próprio pensamento. A fragmentação não é apenas forma — é sintoma. A ansiedade se manifesta como pensamento em espiral, onde o excesso de consciência paralisa. Ele hesita, culpa-se, retorna, reconstrói. E a linguagem acompanha esse movimento hesitante.
Virginia Woolf construiu, em “Mrs. Dalloway”, um retrato refinado da inquietação mental. Clarissa atravessa Londres, organiza uma festa, interage com conhecidos. Mas a superfície social abriga um subterrâneo instável. Septimus, personagem paralelo, escuta vozes, mergulha em delírio. Ambos carregam tensões que não se manifestam em gestos, mas em pulsações internas. Woolf compreende a ansiedade como ritmo: ela está na maneira como os pensamentos se sobrepõem ao presente.
Em “A Redoma de Vidro”, Sylvia Plath cria Esther Greenwood, uma jovem que se vê encapsulada por uma espécie de opacidade existencial. Nada mais alcança. O tempo desacelera. A redoma não é metáfora; é experiência psíquica. Esther deseja dormir por semanas. Deseja desaparecer sem conflito. A ansiedade, aqui, é exaustão convertida em mutismo.
Holden Caulfield, narrador de “O Apanhador no Campo de Centeio”, fala demais. Repete-se, corrige-se, gira. Tudo parece uma tentativa de justificar sua existência. A ansiedade se manifesta na linguagem: é uma gagueira emocional que toma o texto. Holden acusa os outros de falsidade porque teme ser desmascarado. Ele é o adolescente que não tem onde descansar a própria angústia.
Emma Bovary, de “Madame Bovary”, não apresenta sintomas explícitos de ansiedade. Mas há algo em sua espera crônica, em sua sucessão de desejos insatisfeitos, que toca a mesma ferida. Ela se entedia. Compra. Sonha. Adultera. Nada a contém. O presente é uma espera sem fim. O tédio é a ansiedade verticalizada — sem crise, mas constante.
Raskólnikov, em “Crime e Castigo”, pensa demais antes, durante e depois do crime. Ele sofre antecipadamente. A culpa vem antes do ato. A ansiedade aqui é hipertrofia moral: tudo precisa ser examinado, justificado, explicado. Cada passo é acompanhado por uma sucessão de monólogos. O castigo real não é o julgamento. É a consciência.
Em “Herzog”, Saul Bellow dá forma à mente que tenta se organizar por meio da linguagem. O protagonista escreve cartas que não envia. Pensa, elabora, revisita. Há uma tentativa desesperada de fazer sentido — e uma impossibilidade estrutural de atingir esse sentido. A ansiedade se mostra como compulsão intelectual: pensar demais é um modo de paralisar.
Clarice Lispector, especialmente em contos como “Amor”, insinua a ansiedade como vibração interior. Ana, a personagem, entra em crise ao observar um cego mascando chiclete. O gesto banal desregula sua percepção do mundo. Clarice opera em outra chave: suas personagens não racionalizam o que sentem — elas apenas sentem. E esse sentir é sempre excessivo.
Hamlet não é apenas hesitante — é um corpo tomado por pensamento. Ele posterga, reencena, revisa. Sua tragédia é a consciência. A dúvida, a paralisia, a elaboração excessiva. Hamlet é o patrono da ansiedade reflexiva. Entre o ser e o não ser, ele calcula — e perde o momento.
A literatura não precisa tematizar a ansiedade para colocá-la em cena. Ela pode fazer isso pelo ritmo, pela forma, pelo modo como os parágrafos respiram. Um personagem ansioso não é aquele que declara estar em crise — é aquele que vive em crise mesmo quando age com perfeição.
A boa literatura não fala sobre a ansiedade. Ela a encarna. Está nos períodos que se estendem além do necessário. Nas frases que se interrompem. Nos pensamentos que se repetem. Nos corpos que hesitam. O leitor reconhece, ali, não um diagnóstico, mas um espelho. Alguém escreveu aquilo antes de você pensar. E isso basta para que você, por um instante, se sinta menos sozinho.