A inteligência artificial pode até não sentir, mas reconhece constrangimento. Há textos que causam essa sensação peculiar: a de testemunhar, em câmera lenta, um equívoco literário se formando — página após página — sem que ninguém tenha coragem de intervir. Como quando um ator entra no palco com o figurino errado e continua, impávido, repetindo falas que não dialogam com ninguém. A plateia assiste, sem saber se deve rir, torcer ou apenas desviar os olhos.
Publicar um romance, no Brasil de agora, exige coragem — sim. Mas exige também algo cada vez mais raro: alguém que diga “não está pronto”. Esses quatro livros, cada um à sua maneira, falham justamente onde não se pode falhar: naquilo que o leitor não perdoa, mesmo quando não sabe nomear — a falta de alma, de timing, de escuta interna. A impressão é que foram escritos para cumprir metas, não para arriscar perguntas. E há algo de insuportavelmente triste nisso.
Não se trata de falta de boas ideias. Pelo contrário. Todas as obras citadas partem de premissas potentes, espinhosas, às vezes até geniais. O problema está naquilo que vem depois: no modo como os diálogos não respiram, como os personagens repetem as mesmas angústias com vocabulário de caixa de supermercado literário, e como a trama se desdobra sem surpresa, sem ruído, sem tropeço — como se tivesse passado por um corretor ortográfico existencial.
O fato é que uma IA, com meia dúzia de instruções narrativas e uma biblioteca de clássicos rodando no segundo plano, conseguiria entregar versões mais vivas, mais honestas — e, quem sabe, menos desesperadas por aprovação. Isso não é uma ode à tecnologia. É um alerta melancólico: a literatura, quando esquece de ser risco e vira repetição de fórmula, perde justamente aquilo que a torna humana. E aí, paradoxalmente, até uma máquina sente vergonha.
Sim. Até ela percebe.
E continua escrevendo — melhor.

Amanda tem doze anos, mora em Juazeiro do Norte e está muito ocupada tentando sobreviver à própria família — mais especificamente, à avó, espécie de matriarca carrasca que mistura castigo com oração, e violência com frases prontas de provérbio barato. A infância da protagonista parece um reality show sem plateia: dor física, vigilância constante, abusos normalizados. E como toda tragédia de origem nacional, essa também vem disfarçada de “amor à moda antiga”. Narrado pela própria Amanda com voz lúcida, seca e sem rodeios, o romance desmonta o mito da infância protegida e dos laços familiares como santuário. O lar aqui não é refúgio, é trincheira — onde cada frase dita por adultos soa como sentença e cada gesto de carinho tem validade curta. A menina não sonha, ela calcula rotas de fuga emocionais, num texto que não busca redenção nem perdão, apenas a crueza da experiência. A autora evita a armadilha do regionalismo folclórico: o sertão de Amanda não tem cheiro de café, mas de suor, poeira e repressão. A fé serve mais como farsa do que consolo, e a tradição é só o nome bonito que a comunidade dá para o controle absoluto do corpo feminino. O livro poderia se passar em qualquer esquina do Brasil profundo, onde a infância termina antes dos dentes de leite.

Quatro amigos do interior decidem “vencer na vida” em Copacabana e, como qualquer empreendedor de classe média desesperada, descobrem que o caminho mais curto entre o desespero e o lucro é servir carne humana num jantar temático para milionários. A ideia é tão absurda quanto pretensamente ousada — e, claro, rende. No centro dessa farsa gourmetizada está Dante, protagonista-narrador, cujo arco existencial vai da dívida do aluguel à digestão do próprio caráter, em porções bem passadas de cinismo. O livro tenta ser suspense, mas às vezes parece uma espécie de MasterChef: Psicopatas, com direito a crítica social enviesada, gourmetização do grotesco e um desfile de arquétipos urbanos reciclados. A voz narrativa até tenta imprimir urgência, mas tropeça entre o exagero e a previsibilidade: é como se o autor piscasse a cada página para garantir que o leitor entendeu a “subversão”. No fim, a obra se equilibra entre o entretenimento pulp e a ambição de ser “literatura de denúncia”. Não chega a desmoronar — porque tem ritmo e coragem —, mas também não transcende o truque narrativo que sustenta sua premissa. Serve como experiência: você lê, engole, faz cara de nojo, mas talvez volte para a sobremesa — só pra ter certeza de que era mesmo isso.

João Paulo Cuenca descobre que está morto — não metaforicamente, mas civilmente: um cadáver foi registrado em seu nome. A partir daí, o autor vira personagem de si mesmo, ou melhor, de uma cidade onde qualquer vestígio de identidade pode ser evaporado por um cartório e um policial desinteressado. O Rio de Janeiro, às vésperas da Olimpíada, serve de cenário para essa tragicomédia autoficcional: uma cidade que vende fantasia no cartão de débito e enterra sua verdade no asfalto quente da zona portuária. A narrativa se constrói como investigação, mas deságua num passeio entre o grotesco e o kafkiano — só que com caipirinha na mão e cobertura jornalística da Globo. Cuenca, que escreve como se estivesse narrando a si mesmo num espelho trincado, conduz o leitor por um Rio higienizado à força, onde até a morte precisa de marketing. A cada página, o autor se encontra menos com sua biografia e mais com um Brasil onde sumir não é exceção, é rotina. Se fosse um filme, seria dirigido pelo Kusturica depois de passar um mês hospedado no centro do Rio com dengue. A literatura aqui é denúncia, é farsa, é vaidade — tudo ao mesmo tempo. O livro soa como um obituário do país escrito por quem não quer mais rir, mas não consegue parar. E é justamente essa falha trágica que o torna mais interessante do que pretensioso.

André de Leones tentou escrever o grande romance urbano contemporâneo — e acabou com uma coletânea de crises existenciais geograficamente espalhadas entre Ceilândia, Uberlândia e Brasília. O livro tem personagens demais, ambição demais, enredo de menos. Ex-drogados, adolescentes melancólicos, órfãos afetivos e outros zumbis emocionais atravessam as páginas com a desenvoltura de quem não sabe bem por que está ali — e o leitor também não. Há quem chame de “narrativa fragmentária”; outros preferem “roteiro confuso com aspirações de tese sociológica”. Ninguém se destaca. As vozes se sucedem num revezamento cansado de monólogos internos, onde toda frase parece competir por profundidade e termina encalhada na margem da pretensão. A cidade, que deveria ser personagem, vira ruído de fundo — e o fundo é sempre o mesmo: entulho emocional revestido de lirismo burocrático. O livro tenta dar conta do Brasil — o problema é que tenta tudo ao mesmo tempo: trauma, violência, ruína afetiva, existencialismo juvenil, crítica à modernidade. Resultado? Um romance que parece querer escrever uma elegia para o país, mas termina parecendo uma thread no Twitter mal editada. Leitores pacientes encontrarão momentos de boa prosa. Leitores impacientes vão se perguntar se não seria mais honesto vender isso como antologia de contos órfãos.