Centenário de Rubem Fonseca

Centenário de Rubem Fonseca

Há escritores que se impõem pelo estilo da escrita. Outros são reconhecidos pela contundência do mundo que expõem. Rubem Fonseca pertence às duas categorias, e talvez a mais uma terceira: a dos autores que, mais do que testemunhar a transformação de seu tempo, moldam suas imagens e contradições. No centenário de seu nascimento, o lugar que ocupa na literatura brasileira continua envolto por tensões. Ele se situa entre alta e baixa cultura (quando essa distinção tinha relevância); autor erudito e construtor de best-sellers; cronista das ruas cariocas e mero reprodutor de mitos da masculinidade.

Rubem Fonseca nunca foi um outsider. Pelo contrário, a obra dele é um produto acabado da modernização cultural e urbana do Brasil no século 20. Longe de se posicionar à margem, ele é, de certo modo, um dos primeiros autores nacionais a absorver plenamente os códigos da indústria cultural. O resultado é uma prosa híbrida que combina imagens da violência, erudição fragmentária e apelo popular.

Pode-se ver sua escrita atravessada por três vetores. O primeiro é a aclimatação do romance policial de inspiração norte-americana ao contexto da urbanização brasileira. Fonseca funde a tradição da crônica de costumes do Rio de Janeiro, a cidade da violência e do cartão-postal, com códigos do “hard-boiled” e da literatura “noir”. Os protagonistas se parecem mais com detetives privados do que com homens comuns. São advogados, policiais, delegados, todos imersos em um cotidiano de brutalidade.

O segundo vetor é o que se poderia chamar de “entretenimento erudito”. Uma estratégia semelhante à de Umberto Eco, que mistura estruturas narrativas populares (folhetim, romance de mistério) a digressões enciclopédicas, muitas vezes inúteis, sobre temas bem aleatórios. No romance “A Grande Arte”, a trama é entrecortada por descrições detalhadas de tipos de facas, metais e técnicas de corte. É uma erudição kitsch, exibida como fetiche, para elevar o gênero policial a um patamar superior de sofisticação.

O terceiro elemento é a estética “gore” que marca a fase final da obra de Fonseca. Sangue, vísceras, fluidos corporais, tudo vira uma profusão de imagens que antecipa o que a crítica Sayak Valencia chamou de “capitalismo gore”. Trata-se de uma estetização da violência extrema, que transforma o corpo humano em espetáculo e mercadoria. Nesse sentido, Fonseca parece estar à frente de seu tempo e demasiado colado a ele.

Masculinidade hipertrofiada

O que estrutura a obra de Fonseca é, sem dúvida, a masculinidade. Os personagens homens são invariavelmente duros, lacônicos e erotizados até o limite da caricatura. Uma virilidade hipertrofiada que se impõe como medida da ação e da justiça também caricata. Nos romances “Vastas Emoções, Pensamentos Imperfeitos”, “Bufo & Spallanzani” e “Agosto”, esse viés masculino ganha densidade mítica. Isso ocorreu nos anos 1980, justamente no momento em que Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll questionavam o sujeito masculino, seus desejos e limites.

Outra marca do tempo está na relação de Fonseca com a política. Há indícios consistentes, mas jamais confirmados, de sua colaboração com empresários que apoiaram o golpe de 1964, incluindo a possível redação de roteiros para filmes pró-ditadura. Por outro lado, ele sofreu censura dos militares. O livro “Feliz Ano Novo” (1975) teve circulação proibida por retratar uma violência social que o regime preferia silenciar. O mesmo escritor que flertava com o autoritarismo captou o excesso que brotava da realidade urbana.

Não surpreende, por isso, que ele tenha sido alvo de especulações literárias. No livro “A Literatura Nazista na América”, Roberto Bolaño criou um personagem que muitos identificaram como sendo Rubem Fonseca. A reação dele nunca foi pública, mas o episódio serviu para reavivar um debate em torno de sua figura.

O saldo de sua obra ainda está em disputa. Cultuado por leitores e reconhecido por parte da academia, Fonseca ocupa uma zona ambígua da literatura brasileira. Para uns, é um expoente de uma “subliteratura”, aquela que se aproxima demais do entretenimento. Para outros, é um cronista necessário da degradação urbana, cujos ecos atravessam autores como Patrícia Melo, Paulo Lins, Marcelo Aquino e Fernando Bonassi.

O certo é que sua ficção é inseparável da formação da sensibilidade brasileira que viu o cenário do Rio de Janeiro se transformar numa guerra muito particular, ao mesmo tempo em que absorvia os códigos globais da cultura de massa. Fonseca foi um dos primeiros a perceber que o Brasil contemporâneo caminhava rumo ao colapso. No centenário de nascimento do autor, sua obra nos confronta com um espelho, pois revela tanto a feiura do mundo urbano quanto os mecanismos que a tornaram atraente ao público.