No mundo literário, o anonimato costuma ter cheiro de marketing duvidoso ou de poeta tímido. Mas, às vezes, ele aparece com cara de assombro: livros que brotam do nada, viralizam, emocionam, escandalizam, e ninguém sabe quem escreveu. Nem mesmo a tia fofoqueira do bairro conseguiu descobrir. É como se tivessem sido escritos por fantasmas extremamente talentosos, que deixaram a cena discretamente enquanto a plateia aplaudia de pé e perguntava, aflita: “Mas quem foi o autor?!”. E a resposta vem com o eco de um silêncio editorial constrangedor.
A sensação é a mesma de abrir a porta e encontrar um presente embalado com perfeição, sem remetente, sem cartão, sem pistas. Você lê, se envolve, sente raiva, chora, sublinha as melhores frases… e depois percebe que não tem a quem mandar aquele textão de gratidão. Ou de ódio. Porque o criador desapareceu. Ou nunca existiu. Talvez nem seja uma pessoa, e sim um coletivo. Ou um alter ego. Ou, em certos casos, um ex que decidiu publicar sua versão da história sem assinar, só de pirraça literária.
A verdade é que livros anônimos nos provocam de um jeito especial. Eles nos lembram que, no fim das contas, a literatura não pertence ao autor, mas ao leitor que a devora. A seguir, três obras que surgiram do nada e ficaram para sempre, mesmo que seus autores sigam escondidos em alguma esquina da ficção, rindo baixinho de nossa curiosidade inútil.

Mesmo sem jamais ter mostrado o rosto, a autora construiu uma saga imensa, capaz de reinventar a narrativa sobre amizade feminina. A história começa na infância de duas garotas em Nápoles, nos anos 1950, e atravessa décadas marcadas por violência, transformação social e disputas intelectuais. Uma delas sonha com estabilidade; a outra, com revolução. E o vínculo entre as duas é o eixo de um romance que não poupa verdades incômodas sobre classe, poder, desejo e identidade. Escrita com precisão cortante, a obra não suaviza as feridas do amadurecimento, ela as expõe, com raiva e ternura, num retrato que mistura tensão urbana com a intensidade quase mística dos laços que se constroem e desmoronam entre mulheres.

Poucas vezes a toxicidade romântica foi narrada com tanta frieza e honestidade quanto neste diário em forma de ficção (ou será o contrário?). A voz narrativa é masculina, mordaz, cruel e emocionalmente instável, descrevendo uma sucessão de relacionamentos disfuncionais com mulheres que ele usa, manipula e abandona, mas que, por vezes, também o desmontam. O tom é seco, ácido, quase apático, como se a crueldade fosse banal e a dor alheia, combustível literário. É um livro incômodo, que não pede desculpas e tampouco oferece redenção. Talvez por isso tenha se espalhado tão rápido: há algo de desconcertantemente verdadeiro em sua brutalidade emocional, como se alguém tivesse escancarado os bastidores sombrios da vida afetiva contemporânea.

Durante o colapso da Alemanha nazista, uma mulher anônima decide registrar em diário os acontecimentos que viveu entre abril e junho de 1945, em Berlim. O que emerge não é um relato heróico, mas um testemunho cru da degradação humana em tempos de guerra: estupros em massa, fome, medo e a tentativa desesperada de manter alguma dignidade enquanto tudo ao redor desaba. Sua escrita evita o sentimentalismo e não se rende a julgamentos fáceis. Ao contrário: ela expõe com uma lucidez desconfortável os jogos de poder e sobrevivência em uma cidade sitiada. O anonimato da autora não enfraquece o texto, ao contrário, o fortalece. Transforma o diário numa denúncia universal, e sua voz, numa das mais corajosas da literatura do século 20.