No começo, parecia só mais uma história policial para a televisão norte-americana no ano de 1990. Uma cidadezinha no noroeste dos Estados Unidos, uma jovem assassinada, um agente federal excêntrico encarregado de resolver o crime. Tudo em “Twin Peaks”, a princípio, poderia ser confundido com um enredo de mistério tradicional. A trama clássica para desvendar a identidade do assassino, a pergunta insistente que a narrativa faz para prender a atenção dos leitores ou, no caso, dos telespectadores.
Mas logo nas primeiras cenas a superfície se rompe. Havia uma novidade criada pelo diretor David Lynch e de seu parceiro Mark Frost. A floresta mostrada na série sussurra, os móveis rangem de maneira estranha, e até as corujas não são o que parecem. O crime deixa de ser o centro da narrativa. Aliás, o centro, na verdade, nunca existiu. A televisão norte americana e do mundo todo viu nascer sua primeira obra verdadeiramente moderna, abrindo caminho para o streaming de hoje. O inconsciente se projetava na tela.
Ricardo Piglia dizia que toda narrativa policial contém duas histórias simultâneas. Uma visível se constrói diante do leitor ou do espectador. A outra é oculta e só emerge no final, para reconfigurar tudo o que se viu antes. “Twin Peaks” (relançado no Mubi) adota esse princípio, mas o leva ao extremo.
O assassinato de Laura Palmer é só o primeiro véu, pois atrás dele há a sucessão infinita de máscaras. O espectador tem de fazer um trabalho de descascar as peles de uma cebola, que por sua vez não tem um miolo ou uma essência final a ser encontrada. A verdade está nas inúmeras superfícies da trama criada por Lynch.
O mundo de “Twin Peaks” é um simulacro do passado. Como Fredric Jameson analisou o cinema nostálgico dos anos 1980, com seus pastiches, a pós-modernidade se alimenta de imagens de segunda mão. A cidade inventada por David Lynch parece saída dos anos 1950. As lanchonetes com garçonetes, as máquinas de músicas (jukebox) tocando baladas tristes de jazz, os casacos de lã, as jaquetas de couro, os penteados imaculados e sobretudo as mulheres exuberantes. Mas tudo isso é só uma encenação.
Sob a fachada suburbana da cidade de Twin Peaks, pulsa um horror íntimo, viscoso e sem nome. Freud chamaria isso de “unheimlich”, o estranho que habita o coração do familiar. É o que sentimos quando o objeto conhecido se torna irreconhecível, quando uma sala bem iluminada esconde um segredo invisível. A personagem Laura Palmer é o retrato disso: a filha exemplar, a rainha do baile, angelical, mas a mulher torturada, viciada em drogas e vítima de abusos. Ela é a encarnação do duplo.
Os duplos de “Twin Peaks” guardam a herança do médico e do monstro de Robert Louis Stevenson. O cinema inteiro de Lynch, de “Veludo Azul” a “Império dos Sonhos”, se faz com o estranhamento do que nos parece familiar. Todos os personagens têm a fissura interna. Leland Palmer, pai da vítima, dança no velório da filha. Donna, a melhor amiga de Laura, investiga o assassinato com um misto de solidariedade e desejo para assumir sua paixão por James (namorado secreto de Laura).
No centro da teia de “Twin Peaks”, está o agente Dale Cooper. Ele é a mistura do homem da lógica, mas também é místico, intuitivo, dado a sonhos proféticos e insights orientais. Cooper não é um apenas detetive do cinema noir ou da literatura de Raymond Chandler. Sua figura se aproxima à de um xamã, um cavaleiro zen enviado àquela cidade para desenterrar os demônios locais (e os seus próprios). No final, fica claro que até Cooper carrega um espírito demoníaco dentro de si.
O que distingue “Twin Peaks” e abriu caminho para os sofisticados thrillers atuais do streaming, é sua recusa em estabilizar o sentido. A graça está para além do jogo de desvendar um crime. É fascinante sua capacidade de desordenar o que a própria trama expõe. Por isso, a série se apoia numa espécie de filosofia do pesadelo. A lógica onírica que estrutura a narrativa — sonhos, duplos, dimensões paralelas, salas vermelhas onde o tempo anda para trás — é uma forma de dizer que a razão não dá conta do mundo.
Ao assistir “Twin Peaks”, o espectador tem poucas respostas. Mas a graça está na busca pelo enigma. E é isso que torna a série ainda hoje tão radical. Em vez de narrar uma história, ela convoca o telespectador a participar e descascar as peles de uma cebola. Por isso sobreviveu ao tempo e se tornou uma referência para a nova era da TV. Os mistérios de “Dark” e a tensão de “True Detective” mantêm uma dívida com Lynch. Mas não chegam a flertar com o abismo da investigação realizada por Dale Cooper.
“Twin Peaks” não explica muito e, por isso, foi o embrião para a experiência ainda mais radical de Lynch, que é “Cidade dos Sonhos”. Ainda hoje, depois de 35 anos, a série nos inquieta, uma vez que aposta nas sombras e no duplo estranho/familiar. Talvez seja essa sua maior lição. A televisão, a literatura ou o sonho pode ser também um lugar onde a realidade se desfaz de vez, para mostrar o funcionamento do mundo. O que sobra ao final é aquilo que o espectador não consegue bem nomear e também não esquece.