É curioso, porque por muito tempo fingimos que já tínhamos entendido “Huckleberry Finn”. O texto original, aquele de Twain, aquele da infância dos homens brancos, das aulas sobre sátira e ironia e o tal espírito americano. O livro lido como tradição e tratado como símbolo. Mas quando Percival Everett escreveu “James”, o que ele fez não foi atualizar a história, nem corrigir seus erros, nem brincar de reescrever o cânone. O que ele fez foi arrancar a pele do mito com as unhas e perguntar — com a voz baixa dos que não têm permissão para gritar — se aquela história era mesmo de todos ou se ela sempre foi de apenas alguns. E por que continuamos fingindo que não sabemos a resposta.
“James” começa como quem não quer lembrar. A narrativa hesita, dobra sobre si mesma, tropeça. Como se o próprio texto carregasse o peso da mentira que sustenta sua origem. Jim — ou agora James — já não é o companheiro simpático, o alívio moral do jovem Huck. Ele é outro. É alguém que vê. Alguém que aguenta. E isso muda tudo. Porque quando quem narra é quem apanha, o mundo não se organiza em aventuras, mas em sobrevivência. E não há romance nisso. Há cálculo, vigilância, segredos guardados nos músculos. A linguagem que Everett usa não serve para ornamentar, mas para revelar rachaduras, como quando a luz entra por uma parede podre e você percebe que não há estrutura alguma segurando aquela casa.

Ao reler a mitologia fundadora com olhos de quem foi apagado dela, “James” provoca uma vertigem moral. E o mais impressionante é que essa vertigem não se dá por meio de frases acusatórias ou discursos inflamados. Ela acontece no detalhe. No modo como James observa. No modo como pensa. No modo como escolhe não dizer. O silêncio que separa um pensamento e outro parece conter mais história do que cem páginas de explicação. E isso incomoda. Porque todo leitor quer ser guiado, mas Everett não guia ninguém. Ele escreve como quem sussurra para dentro da própria cabeça, e quem quiser ouvir que se aproxime — e assuma o risco.
O sucesso de “James” não é fácil de entender se você o observa pela lógica da indústria. Não é um livro feito para viralizar, embora tenha viralizado. Não é um livro feito para agradar, embora tenha sido amado. Talvez porque ele não lida com a ideia de agrado. Lida com necessidade. Com urgência. Com aquele tipo de escrita que só acontece quando já não há mais nada a perder. E isso tem valor. Porque o leitor, mesmo o distraído, mesmo o apressado, reconhece quando algo foi escrito com sangue real. E não há algoritmo que simule isso.
Claro, houve quem dissesse que Everett estava se aproveitando do momento. Que revisitava um clássico só para causar impacto. Mas esses comentários soam como desespero de quem não sabe onde se esconder quando o espelho é virado. Porque “James” não “subverte” apenas a literatura americana. Ele rasga a ideia de inocência que sustenta toda uma cultura. E isso, sim, é insuportável. Porque não há como ler esse livro e continuar achando que o passado foi um erro elegante. Everett mostra que o passado foi um crime — e que o presente é a continuação dele, com melhores figurinos.
E é estranho como tanta dor pode ser tão bem escrita. Porque sim, há beleza. Não no sentido decorativo, mas no sentido de precisão. A frase é afiada, justa, feita com fúria controlada. E há humor também, aquele tipo de humor que aparece quando já se passou da vergonha, quando só resta rir porque tudo já foi perdido. E há ternura. Mas não aquela ternura cinematográfica. É uma ternura cansada, cínica, uma ternura que sabe que vai morrer, mas insiste mesmo assim.
Houve um tempo em que livros assim passavam despercebidos. Mas algo mudou. Não é que o mundo ficou mais justo, ou que a crítica ficou mais corajosa. É que há certos livros que não podem mais ser ignorados. Não importa o quanto tentem. Eles vazam. Eles escorrem pelas frestas do sistema. “James” é um desses. Um livro que se espalha não porque foi programado para isso, mas porque encontrou o lugar exato onde doía. E tocou ali. E apertou.
O fato de ter ficado no topo das listas por semanas é, no fundo, apenas um detalhe. O verdadeiro impacto de “James” não está nos rankings, mas nas conversas que ele obriga a acontecer. Nas salas de aula, nas rodas de leitura, nas mensagens trocadas de madrugada entre amigos que não sabem o que sentir depois da última página. É um livro que não termina. E talvez nem devesse. Porque há feridas que precisam continuar abertas, só para que a gente não esqueça onde está doendo.
E talvez a única coisa realmente escandalosa sobre “James” seja essa: ele não oferece saída. Não há moral redentora. Não há catarse. Há apenas um homem, um nome, um silêncio que agora tem voz. E quem escuta essa voz com atenção talvez nunca mais consiga ler os clássicos da mesma maneira.