Nem sempre é o tempo certo. Às vezes, os livros chegam antes — ou tarde demais. E, mesmo assim, ferem no ponto exato. 2025 não foi um ano de grandes promessas editoriais internacionais. Mas alguns títulos cruzaram fronteiras com o tipo de urgência que não levanta bandeira: preferem atravessar calados, como quem invade um sonho que já parecia esquecido. Não vieram para fazer barulho, mas para incomodar — discretamente, como pedra no sapato de um domingo longo demais.
Há uma espécie de parentesco entre eles, embora não se pareçam. Um se refugia na cozinha para lidar com o luto. Outro se perde numa fábrica que não fabrica nada. Há quem reescreva um clássico americano a partir da voz que foi silenciada por séculos. Outros ainda preferem habitar o intervalo — essa região estranha onde a linguagem falha, mas a sensação insiste.
Curiosamente, não há excessos. A contenção impera. A beleza, quando aparece, vem embutida na falha: um diário que não avança, um corpo que se destrói devagar, um conto que acaba antes de começar. A violência, aqui, não grita. Sussurra. Os melhores livros de 2025 não são para quem busca redenção. São para quem aceita ficar sem resposta.
E há poesia. Uma poesia que não se esconde atrás da métrica, mas também não se dobra ao verso decorativo. Uma poesia que sangra sem fazer cena. Cristina Peri Rossi assina sua vingança com amor — não como antídoto, mas como testemunho de quem resistiu à lógica do apagamento. Porque amar, nesses livros, é insistir. Mesmo que o mundo já tenha fechado as portas.
Sete livros. Sete formas de se manter em pé quando tudo afunda. Não como farol — isso seria fácil demais —, mas como pequenas brasas encobertas pelo silêncio. E quem sabe seja isso o que ainda salva: esse tipo de literatura que, mesmo sem querer, acende o escuro.
Porque há livros que chegam para nos lembrar que ainda estamos vivos. Mesmo que doam. Mesmo que custem. Mesmo que pareçam não dizer nada — e, por isso mesmo, digam tudo.

Algumas histórias não se abrem: escorregam. As seis narrativas reunidas aqui deslizam entre gêneros, recusando rótulos, mas deixando cicatrizes. Não há uma protagonista — há seis. E talvez mais. Mulheres, crianças, animais, vozes que atravessam o cotidiano com a sensação de que algo invisível acabou de se deslocar. E ninguém viu. A prosa é seca, nervosa, precisa. Schweblin trabalha como quem desenha com bisturi: não há gordura, nem excesso. Cada cena sustenta a tensão de um fio prestes a arrebentar. Os contos acontecem rápido, mas reverberam devagar. O mal aqui não é grandioso — é doméstico. Brota da rotina, das relações familiares, dos silêncios. O terror não vem do escuro, mas da luz comum demais. Há personagens que desaparecem. Outros que se desfazem por dentro. Crianças que não dormem, mães que não reconhecem seus filhos, presenças que não deveriam estar ali. Mas estão. E ninguém ousa perguntar por quê. O leitor não encontra conforto. Encontra estranhamento. E, de certo modo, alívio. Porque essas histórias parecem sussurrar o que ninguém tem coragem de dizer: que o mundo, mesmo quando normal, é profundamente errado. E que o mal — o bom mal — é o que nos obriga a continuar olhando.

Acordar, esquecer, repetir. O narrador deste romance não tem nome, endereço fixo ou memória confiável. Tudo o que tem é um corpo marcado pela decadência e uma sucessão de ressacas que apagam a continuidade dos dias. Ele bebe até apagar — e quando desperta, está sempre em um lugar estranho, às vezes sujo, às vezes sublime, cercado de restos, ruídos e uma dúvida antiga: o que aconteceu antes de tudo isso? A narrativa, em primeira pessoa, é uma crônica de dissolução física e moral. Mas não há drama excessivo. A linguagem é seca, exata, por vezes brutal, cortada por alucinações ocasionais e lampejos de beleza ácida. O protagonista não procura redenção. Nem sentido. Ele apenas relata, com a frieza de quem já se acostumou ao colapso. Seu corpo é cenário, sintoma, resíduo. A cidade — se é que é uma — aparece aos pedaços, como se também estivesse dopada. Pessoas cruzam seu caminho sem importância narrativa. Elas são função, ruído de fundo, presenças anestesiadas por uma rotina de destruição consentida. O tempo não passa: se arrasta entre doses e cortes de memória. E ainda assim, sob a sujeira e o cansaço, há algo que pulsa. Uma espécie de ternura estranha, enviesada, como se o narrador estivesse tentando cuidar de si sem saber como. Há sobrevivência, mas sem heroísmo. Apenas um corpo que insiste. E uma voz que, por mais exausta, ainda não silenciou.

James corre. Mas não apenas com o corpo. Ele corre com a língua, com a memória, com a fúria contida em séculos de apagamento. Conhecido nos livros como Jim, o ex-escravizado de “Huckleberry Finn”, ele aqui toma a palavra — e não a devolve. Pela primeira vez, conta sua história com a própria voz. Não há caricatura, não há subserviência. Há consciência e astúcia. E também desespero. A narrativa é em primeira pessoa, mas não é linear. James narra como quem elabora sua própria existência em tempo real. O rio Mississippi continua sendo o cenário, mas o percurso é outro. A geografia da liberdade não está nos mapas: está nos diálogos truncados, nas hesitações, nos gestos de fuga que não se explicam. Cada parágrafo parece combater uma versão anterior da história americana. A linguagem transita entre o coloquial e o reflexivo, com trocas de registro que revelam a tensão entre identidade performada e essência negada. James desmonta a farsa, e ao mesmo tempo constrói uma narrativa própria — carregada de humor cortante, ironia amarga e empatia inesperada. O livro não reescreve Huck Finn. Ele o desarma. E, ao fazê-lo, restitui a James o que antes lhe foi negado: a condição plena de sujeito. Um homem com corpo, voz, passado, raiva — e inteligência de sobra para escapar das armadilhas da linguagem.

Uma funcionária anônima chega a uma fábrica enorme, sem nome, para um trabalho temporário. A cada corredor onde passa, algo escorrega: uma maçã que cai sem razão, uma porta que se fecha atrás de si, a luz branca que nunca se apaga. A narrativa em terceira pessoa acompanha seus passos — e seus pensamentos — enquanto percebe que a rotina ali não é rotina: é um teatro do absurdo em que ela, desacostumada, já não sabe mais quem é. O ambiente é biombo de incertezas. A protagonista nem sempre distingue se está de fato trabalhando ou se foi absorvida por um dispositivo maior, quase orgânico. A prosa reflete essa imersão surreal: descritiva, quase científica, mas com fissuras. O texto se instala no cotidiano e o distorce, transmutando papel, máquina e números em enigmas domésticos. Não há clímax. Não há explicação. A mulher segue — lagarta sonhando com transformação — e o mundo ao redor continua funcionando, indiferente. Cada página rende um eco de pergunta: e se o trabalho for apenas uma arquitetura do absurdo? A fábrica, afinal, não produz produtos. Produz um estado: o de se perder sem saber. O livro é uma ode à quietude inquietante no âmago da rotina.

Escrever não é criar. É descobrir o que sobra quando nada mais funciona. O narrador deste livro — sem nome, sem gênero definido, apenas um “eu” hesitante — decide manter um diário como exercício de caligrafia. Mas o que emerge não são letras, e sim lapsos. Pensamentos que tropeçam, ideias incompletas, interrupções voluntárias. O vazio aqui não é ausência: é método. A narrativa parece errática, mas guarda uma lógica oculta. Em meio a listas de tarefas, manias, incômodos e observações mínimas, o narrador constrói um retrato involuntário de si. A linguagem é informal, quase doméstica, mas subitamente se verticaliza em metáforas incomuns. O humor — seco, quase desolado — serve de defesa contra o silêncio. O autor não quer escrever um livro, mas acaba escrevendo a si mesmo. Há uma tensão constante entre o desejo de controle e a rendição à falha. Cada entrada no diário revela o fracasso do projeto inicial: o texto não melhora, a letra não firma, o plano desanda. E é nesse fracasso, exatamente, que nasce a beleza. Uma beleza torta, introspectiva, que só existe na borda entre o tédio e a epifania. Não há história. Há presença. Uma tentativa honesta de existir na linguagem, mesmo quando ela escapa. Ou talvez justamente por isso.

Mikage Sakurai acorda em uma cozinha iluminada pelos primeiros raios da manhã, sentindo o vazio do luto apertar o peito. Ela perdeu a avó e, com ela, o último elo familiar. Nos talheres, nas caçarolas, encontra um consolo silencioso: cozinhar torna-se um ato de sobrevivência afetiva. A narrativa em primeira pessoa acompanha cada gesto — cortar, misturar, provar — e nos revela a delicadeza de um coração quebrado, reconstruído por rotina e cheiro. A cozinha é templo e abrigo. Ali, Mikage convive com homens que lhe oferecem abrigo e amizade, atravessando memórias e ausências. O ambiente doméstico vira palco de conferência entre passado e presente, entre a dor do adeus e a ternura ingênua de construir novo lar. A prosa se equilibra entre o minimalismo — “uma colher de açúcar”, “o sabor da noite” — e a intensidade sutil de cada textura. A jornada é pequena, mas ressoa. Porque o que se cozinha ali não é só arroz, mas remédio; o que se aquece ali não é só chá, mas coragem. A personagem não busca redenção dramática, mas uma continuidade gentil — um modo de existir ainda que o mundo tenha se recolhido. Um livro sobre a simplicidade que cura.

Vozes atravessadas. Séculos comprimidos. Esta antologia reúne poemas de uma poeta que dialoga com o tempo por meio da língua enquanto inventa si mesma. Não se trata de progressão narrativa: trata-se de mutação constante. Cada poema carrega um ritmo próprio: uma palavra amarga, um suspiro, um ressoar político, um sussurro amoroso. A seleção não é nada sorrateira: inaugura fúria, acolhe perdão, recusa fechamento. A presença de temas recorrentes — exílio, erotismo, revolta — é regida por um tom plural: há ironia, urgência, ternura, angústia. A curadoria talvez seja política — afinal, coragem poética é gesto social —, mas não quebra a musicalidade íntima. Há migrações: de nome, de gênero, de voz. E, diante da violência das memórias, o que sobra é o lamento consciente e a celebração do existir apesar. Não é leitura leve. Nem ensaio. Nem manifesto. É construção visceral de território emocional. Poemas que se sobrepõem, se contradizem, se completam — como um mapa instável para navegar por regiões selvagens da língua e do coração. E, ao final, resta a impressão de que a vingança não é ódio, e sim insistência no amor: amor como recusa. Amor como arma.