Roberto Bolaño foi transformado em messias literário por hype editorial

Roberto Bolaño foi transformado em messias literário por hype editorial

A editora Anagrama sabia o que fazia. Quando “2666” foi lançado, a operação de canonização já estava em curso. A morte precoce, a figura magra, o ar errante, a biografia de exilado punk chileno com coração de poeta beat e cérebro de arquivista de crimes. Tudo se encaixava com perfeição quase literária demais. Bolaño era, afinal, um personagem que poderia ter sido inventado por Bolaño. E talvez, em parte, tenha sido.

Porque havia um livro. Havia “Os Detetives Selvagens”. E havia “2666”. Livros gigantescos, labirínticos, livros com uma potência inegável, uma dor espalhada, uma ironia fria, uma inteligência errante que ziguezagueava entre a autoficção e a narrativa policial e a ruína da América Latina. Sim, livros reais. Mas logo depois, livros também como molduras. E depois, molduras sem quadros. E depois, merchandising do próprio mito.

As capas mudaram. As orelhas ficaram mais longas. Os blurbs se repetiam, de autores que já haviam morrido. A crítica se tornou previsível: cada novo texto “inédito” era anunciado com exclamações como se houvesse um gênio perdido em cada fragmento datilografado às pressas num quarto alugado. Mas não havia. Não sempre. Às vezes, havia apenas anotação, bocejo, material inacabado. Só que não importava. O nome sustentava tudo.

No fundo, Bolaño virou sistema. Uma estética literária e uma economia simbólica. Era possível não lê-lo e mesmo assim saber citá-lo. Era possível amar seus livros sem entender sua estrutura. Era possível imitá-lo — e foi o que muitos fizeram, por anos a fio — com relativa facilidade: bastava criar personagens meio poetas, meio delinquentes; um narrador que nunca se explica; algum sumiço, alguma cidade chamada Santa Teresa; uma sensação de que algo enorme está acontecendo fora da página.
O que começou como um reconhecimento — justo, merecido, necessário — da força disruptiva de um autor que surgira no meio da ressaca da literatura latino-americana dos anos 1970, transformou-se numa inflação simbólica. E, como toda inflação, perdeu valor real. É difícil admitir, mas houve uma mutação. Bolaño virou “o escritor Bolaño”, e “o escritor Bolaño” virou mito editorial, e o mito editorial virou messias. O tipo de figura que nunca erra, que nunca envelhece, que sempre anteviu tudo. Até o futuro.

E isso é injusto com Bolaño. Porque o verdadeiro autor — o que passou anos como desconhecido, com livros sem vender, com dificuldades financeiras, com doença, com pressa — jamais quis ser isso. Ele zombava disso. Há cartas em que ele ironiza o circuito literário espanhol. Há entrevistas em que ele expõe a precariedade do campo editorial. Bolaño sabia que a literatura não salva ninguém. E, no entanto, foi canonizado como se fosse um salvador.

É claro que há trechos em que ele beira o sublime. Que “Amuleto” é uma pequena obra-prima silenciosa. Que “Estrela Distante” assusta pela sua secura. Mas há também exageros. Há “O Terceiro Reich”, por exemplo — lançado postumamente, com alarde, como se fosse mais uma peça do quebra-cabeça. Mas é fraco. É rascunho. É exercício. E não há vergonha nisso. Todo grande autor tem livros menores. A vergonha está em fingir que não.

Por trás de tudo isso, uma engrenagem — crítica anglófona, selos editoriais, academia, jornalistas culturais — que encontrou em Bolaño a figura ideal. Ele preenchia todos os requisitos: latino-americano, mas moderno; rebelde, mas legível; literário, mas pop; morto, mas não tanto. Era, em suma, perfeito para ser embalado, exportado, traduzido em massa, inserido em currículos universitários, vendido em aeroportos com selos de “o novo Borges”.

A máquina precisava de um novo nome, e Bolaño foi o nome escolhido. Quando o boom latino-americano perdeu seu fôlego, quando García Márquez virou monumento, quando Vargas Llosa virou político, a literatura hispano-americana parecia órfã. E então Bolaño apareceu, como quem não quer nada, escrevendo em margens, falando de poetas malditos e ex-guerrilheiros. Mas ele era, ao mesmo tempo, a continuação e a negação do boom. E isso o tornava irresistível.

E talvez seja isso que mais o condene a esse lugar de “messias”: ele apareceu no momento certo. No intervalo entre a saturação dos autores canonizados e a emergência da literatura-meme, Bolaño oferecia o tom exato entre densidade e coolness. Era denso, mas não pedante. Era culto, mas tinha uma aura de maldição. Dava para lê-lo como um gênio e como um marginal. Era Borges com heroína, como alguns chegaram a dizer. E como resistir a isso?

Mas toda canonização carrega o risco do congelamento. E Bolaño já começa a pagar o preço disso. Sua linguagem já não surpreende. Suas obsessões, repetidas por tantos imitadores, tornaram-se maneirismos coletivos. A sombra que ele lançou sobre a literatura latino-americana hoje impede a luz de outros nomes. Jovens autores ainda são comparados a ele, como se nada mais pudesse nascer sem essa filiação imaginária. É um paradoxo cruel: o escritor que queria romper com o sistema virou o sistema.

Isso não significa que ele não mereça estar onde está. Bolaño foi, sim, uma das vozes mais importantes do final do século 20. Seu olhar cortante, sua fusão entre o pessoal e o histórico, sua capacidade de escrever o horror sem histeria — tudo isso é real, palpável, transformador. Mas o culto é outra coisa. O culto é o que fazem com ele. O culto é a embalagem, a exegese, a idolatria. E isso, com o tempo, trai o próprio autor.

Hoje, sua presença é quase obrigatória em qualquer discussão literária. Seu nome é citado como selo de qualidade. Há coleções dedicadas a ele. Há dossiês acadêmicos que se multiplicam. Há jovens leitores que o descobrem e sentem que estão encontrando algo proibido, mesmo quando compraram o livro numa prateleira central da livraria do shopping. E isso diz mais sobre o tempo do que sobre o autor.

Bolaño, se estivesse vivo, talvez zombasse disso tudo. Ou talvez não. Talvez gostasse. Talvez se divertisse. Era, afinal, um homem ambíguo, cheio de máscaras, como todo bom escritor. Mas uma coisa parece clara: Roberto Bolaño virou o que ele mesmo teria odiado — um nome sem risco.

E o mais triste: isso não é culpa dele. É culpa nossa. Da crítica. Da indústria. Da pressa por encontrar um ícone. Da nossa incapacidade de lidar com o silêncio, com a obra que se encerra, com o autor que morre. Transformamos Bolaño em totem porque não sabíamos mais como ler sem um guia espiritual.

Mas não há guia. E se houver, é falso. Bolaño é um escritor, não um farol. Um grande escritor, sim. Mas humano. Errático. Imperfeito. E talvez, justamente por isso, mais interessante do que o messias editorial que construíram no seu lugar.