Cristovão Tezza diante do silêncio: uma literatura à altura do Nobel

Cristovão Tezza diante do silêncio: uma literatura à altura do Nobel

Em certa altura do livro “O Filho Eterno”, o narrador conta que sua personagem, o escritor sem nome, pai de Felipe, desenvolveu dois dogmas de juventude. Primeiro: a liberdade é um valor absoluto; segundo: o mal é uma doença, não uma escolha. Um pensamento rousseauniano, oriundo da ideia do bom selvagem, que apresenta a tese de que todo homem é naturalmente bom.

O livro está centrado no desenvolvimento pessoal da personagem-narrador após o nascimento do filho e da notícia surpreendente de que a criança possuía uma alteração cromossômica bastante conhecida atualmente, que dificultaria sua longevidade e sua capacidade cognitiva: a síndrome de Down. A primeira reação do pai foi desejar que o filho não sobrevivesse por muitos dias. Diante da catástrofe que a novidade representa, Tezza descreve a tragédia pessoal do escritor diante de uma responsabilidade imensurável e da sua descrença com a nova situação.

O Filho Eterno
O Filho Eterno, de Cristovão Tezza ( Editora Record, 224 páginas)

Desde os primeiros momentos, o narrador descreve o pai como um homem letrado, desejoso de se tornar um escritor. Compõe poemas e textos literários longos, mas é profundamente exigente com sua escrita. Gostaria de ser publicado, mas tem dificuldade em emplacar uma obra de relevância. Se critica por não ter um emprego e, agora, por ser pai de um filho com necessidades especiais que lhe causa constrangimento. Mas entende que a disputa ancestral, a colossal dicotomia religião versus ciência, não tem lugar ali. Não há pecado no ato, punição divina ou condução espiritual para uma redenção moral e correção de personalidade. O acaso é o responsável. Não há explicação, não há justiça. Há apenas o acaso.

Felipe, o filho eterno, representa uma pureza primordial que não pode ser corrompida pela sociedade; falta-lhe o instrumento a ser estimulado pelas impressões. Algo que não pode ser corrigido pelas ações motivadas pelos discursos hipócritas, na visão do pai, promovidos pelas entidades de então, como superação, inclusão simbólica e heroísmo forçado. O pai rejeita essas máscaras, não quer ser mártir. Para além disso, quer encontrar mecanismos que se distanciem das crenças, da brutalidade das opiniões supersticiosas de uma aura religiosa ordinária e busca uma ação científica comovente.

No caminho, entende que o filho existe, não vai morrer facilmente e, ainda, conhece as novas pesquisas que garantem uma vida mais longa para pessoas com síndrome de Down. Seu “bom selvagem” vai viver, e, na maior parte do tempo, imerso em um mundo muito particular e intocado pela violência rousseauniana retratada pela sociedade corruptora. Não pelos motivos que o pai gostaria que fossem, mas pela natural deficiência de seu organismo como um todo, de seu cérebro infantil e puro. Felipe está fora da corrupção social não por essência, mas por limitação de linguagem e abstração.

Mas e se a natureza de Felipe fosse instintiva? Ele poderia conquistar o mundo, seu mundo, pela vontade de potência nietzschiana. Não há redenção religiosa e, ainda, não há a expectativa da vontade. “Pensa em Nietzsche e no horror da misericórdia, a humilhação como valor, a humildade como causa, a miséria como grandeza. Pois o seu filho, confirmada a tragédia, nem mesmo a esse ponto (ele olha em torno) chegará, porque não terá cérebro suficiente para inventar um deus que o ampare e não terá linguagem para pedir um favor.” Assim, não pode matar um Deus que nunca existiu. Não possui a capacidade do artifício milenar de conceber uma esperança num ser maior e invisível, capaz de vigiar, punir, exigir amor, perdoar e salvar. A salvação, inclusive, é um conceito arquitetado pelo cérebro temporal, que distingue passado e futuro, pelo menos intuitivamente. Não é como Felipe sente ou pensa. Ele, segundo o narrador, vive num eterno presente. Seu cérebro não arquiteta fantasias supersticiosas, mas também não vê a necessidade de discutir e entender a vida, o universo e tudo mais. Seu pai, a personagem-narrador, não quer os subterfúgios das explicações fantásticas, das elucubrações rasteiras, das simpatias ou curas de raízes e garrafas impregnadas de ervas e mau gosto. Ele entende a distância que o cérebro diferente, por causa da trissomia, tem de conceitos que não são imediatos. “Eu tenho que viver mais que meu filho”, ele diz, pois os deuses inventados não valem pra ele (nem mesmo para aqueles que o inventaram), e ele a salvo não está de uma tragédia. O pai segue sua trajetória com a ideia consolidada de que os rumos da vida para os dois e da compreensão de seu papel não passam pela aprovação ou supervisão de uma divindade. “Desde aquela época, a ideia de Deus estava ausente de sua vida.”, explica o narrador quando, em uma cena do passado do pai.

Felipe e o pai são essencialmente absurdos. O pai enfrenta o nascimento do filho com síndrome de Down como um “acidente existencial”, sem sentido, sem justiça, sem consolo metafísico. Como Meursault, em “O Estrangeiro”, o pai tem uma consciência desencantada da realidade, e sua jornada é o aprendizado de aceitar o real como ele é. A sua grandeza está em assumir o peso do mundo sem ilusões. Assim como Sísifo, o pai se transforma em um herói camusiano quando encontra dignidade na aceitação do absurdo.

Para encerrar esse ensaio, a metáfora mais significativa de “O Filho Eterno” se encontra no fato de o pai ser um escritor, e esse escritor vai escrever um livro sobre o filho que não o lerá. Nunca conhecerá sua própria história pelas mãos do próprio pai, justamente aquele que desvendou o segredo de sua dinâmica de vida, que abriu as portas do mistério de sua existência. Assim como Borges, que escreveu: “Ninguém reduza a lágrima ou censura essa declaração do domínio de Deus, que com magnífica ironia me deu ao mesmo tempo os livros e a noite.”, o pai sofre de uma “maldição” metafórica. Mas ele não trata seu infortúnio assim. Nesse sentido, é camusiano. Na rota do absurdo, como Sísifo subindo infinitamente a pedra, ele entende sua função. Sem subterfúgios, prerrogativas ou autocomiseração.

Antes de terminar, é preciso imaginar Felipe feliz. Mais importante, ele é uma personagem de Cristovão Tezza, que, para além de extraordinário escritor, é um pensador e estudioso da condição humana. Nesse “O Filho Eterno”, Tezza disseca elementos de nossa sociedade, pessoas e sistema, de forma bastante direta e eficaz. Ele mostra como todos os nós embutidos nas relações entre pessoas e o conhecimento tradicional afetam a valoração dos acontecimentos e sua continuidade.


Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.