Desde que surgiu, no final do século 19, o cinema tem sido uma das manifestações artísticas mais poderosas do gênero humano, e uma de suas primas mais velhas não fica atrás. No século 6 a.C., a filosofia já tentava dar ao homem alguma explicação para as muitas irrequietudes de sua alma, imiscuindo-se em todos os assuntos que nos interessam, grandes ou pequenos, insignes ou prosaicos. A filosofia, portanto, está em tudo, bem como o próprio Deus, de onde emana todo o amor e toda a sabedoria, de acordo com São Tomás de Aquino (1225-1275). O conhecimento, essa substância heterogênea que domina tudo quanto há na face da Terra, tem passado da filosofia para o cinema da maneira mais orgânica e fervorosa, dirimindo qualquer incerteza quanto aos laços entre a metafísica do saber filosófico e a técnica de colocar imagens em movimento desenvolvida pelos irmãos Auguste Marie (1862-1954) e Louis Jean Lumière (1864-1948), apreciada em “A Chegada de um Trem” (1895) pela primeira vez.
A filosofia busca compreender o mundo, o ser, o tempo, a moral, entre outros aspectos indispensáveis do existir; o cinema, por seu turno, transforma as reflexões da filosofia em luz, música, cor, brilho, enriquecendo a seu modo o debate dito sério. Historicamente, a relação entre os dois é, portanto, feita de convergência e inspiração mútua. A aparição do cinema deu-se num contexto pontuado por metamorfoses científicas. Ainda no início do século 20, filósofos como o francês Henri Bergson (1859-1941), viram no cinema uma nova forma de representar o tempo, algo que até então escapava às artes tradicionais. Em “Matéria e Memória” (1896), Bergson formula a ideia de duração como uma experiência temporal contínua e subjetiva, que o cinema, por meio da dança das imagens, encarnava de modo inédito. O argumento seria burilado por Gilles Deleuze (1925-1995) em “A Imagem-Movimento” (1983) e “A Imagem-Tempo” (1985), no qual interpreta o cinema como uma forma autônoma de pensar. Tal perspectiva ressalta uma das mais sólidas pontes entre a filosofia e o cinema: a admissão de que o cinema não é só um meio cosmético, e sim uma forma independente de criar um novo significado para o existir. Não se trata apenas de filmes que falam sobre filosofia, mas de um cinema que pensa a filosofia, valendo-se de recursos estéticos e narrativos próprios.
Ao longo do século 20, diversos filósofos começaram a enxergar o cinema como um instrumento de análise filosófica. Um exemplo clássico desses filmes que reconfiguram o cinema e fazem-no ombrear com a ciência sobre toda a ciência é “O Sétimo Selo” (1957), de Ingmar Bergman (1918-2007), que representa o encontro entre um cavaleiro medieval e a personificação da morte durante a peste negra. Nessa obra-prima do cinema universal, Bergman, a partir de metáforas que amalgamam o sublime e o tétrico, fomenta debates acerca do sentido da vida, da existência ou não de Deus, do medo da morte, tópicos de fulcro no existencialismo de Søren Kierkegaard (1813-1855) e no pessimismo dionisíaco de Friedrich Nietzsche (1844-1900). “O Sétimo Selo” e outras nove produções figuram nessa lista como ocasiões mágicas em que a beleza do cinema encontra a urgência intelectual da filosofia e suas atormentações libertadoras. E não pode haver nada mais estimulante que a harmonia perfeita, a da forma com o conteúdo.

No mundo ideal, famílias só começariam depois de observados alguns passos elementares. Duas pessoas solteiras, adultas, independentes e desarmadas se conheceriam, passariam dias em conversas tão ridículas quanto imprescindíveis, trocariam beijos, carícias, firmariam compromisso e, só então, pensariam em filhos — que talvez não viessem. Na vida como ela é, entretanto, o estado intermedeia o encontro daqueles que, por uma ou outra razão, cumpridas ou não essas etapas, não alcançam o sonho da maternidade e da paternidade, e, finalmente, um núcleo familiar nutrido por correntes de genuíno afeto, acima até mesmo do onipresente sangue, estaria pronto. A estranheza de “A Avaliação” não é tão diferente de muitos filmes sobre o futuro de nossa espécie, salvo por incluir na equação a inexorabilidade dos avanços da ciência, uma bênção e um flagelo a depender de quem os conduza. Fleur Fortuné acerta em cheio ao mirar os eternos desejos e insatisfações humanos, busca que nem sempre termina bem. O ótimo texto dos roteiristas John Donnelly, Nell Garfath Cox e Dave Thomas acha eco numa das grandes agonias da contemporaneidade, majorada por nosso ímpeto profano de emular a onipotência divina. Mais uma vez, Alicia Vikander apresenta um irretocável de composição de uma vilã dissimulada parida pelo falso progresso tecnológico, muito semelhante ao que se constata na Ava de “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, e ainda assim bastante original.

Filmes que, de uma forma ou de outra, tratam do homem, sua interação com o ambiente e as consequências mais deletérias desse fenômeno — o apocalipse, no pior cenário — já se tornaram o clichê por excelência do cinema mundial hoje. Parece que diretores de todas as colorações ideológicas, que professam fés as mais variadas, com visões de mundo mesmo incoerentes com o ofício de que tiram o sustento são, de tempos em tempos, acometidos de uma descrença fundamental da vida, que, ao menos naquela quadra de sua história, redunda em trabalhos de teor escatológico em maior ou menor grau. Alex Garland é dos poucos cineastas a serem capazes de subverter a pletora de lugares-comuns que sufocam tais enredos, embora seja precipitado se considerar esta uma moda superada. Saborosamente confuso, seu desnorteante “Aniquilação” é, decerto, das produções mais originais no ramo — ainda que transposto do livro do americano Jeff Vandermeer, publicado no Brasil em 2014 pela Intrínseca (se se optar por excluir filmes adaptados de trabalhos literários, aí mesmo é que não resta pedra sobre pedra).

“Ex-Machina: Instinto Artificial”, de Alex Garland, remete o espectador a um cenário que todos nós conhecemos muito bem — no cinema e fora dele — há, pelo menos, um quarto de século. A internet, fruto de um experimento militar em 1969 que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real foi tomando corpo, sendo aprimorada, testada à exaustão, até ficar no ponto para invadir o cotidiano de 99% dos habitantes do globo, independentemente da classe social a que pertençam, da cor de sua pele, da fé que professam. Considerando-se que desses, apenas 60% dispõem de um ponto de conexão eficiente em casa, chega-se à conclusão óbvia de que a inteligência artificial, em sua natureza mais rudimentar, não é assim tão acessível. Partindo do mote de Caleb, vivido por Domhnall Gleeson, o programador jovem (e, por conseguinte, inexperiente; talvez até tolo) e dotado de talento e inteligência invulgares que é escolhido mediante sorteio para se hospedar na casa do chefe, Nathan, o bilionário dono de uma startup de pesquisas para o aperfeiçoamento da interação entre o homem e sistemas eletrônicos interpretado por Oscar Isaac, “Ex Machina” se aprofunda na questão ética por trás das condutas de um e de outro. Logo resta insofismável que Nathan é um psicopata clássico, dissimulado, perspicaz, manipulador e perigoso; mas e quanto a Caleb? O que o teria levado a trabalhar para um tipo tão abjeto? Será que ele é tão inocente quanto aparenta? As respostas vêm nas últimas cenas antes do desfecho, quando Alicia Vikander faz de Ava a ginoide diabólica que apodera-se do que Caleb e Nathan abriram mão de maneira tão ingênua: sua própria humanidade.

Numa sequência muito particular, vinda à luz pelas mãos de outros diretores e usando apenas o mote principal, “Kumiko, a Caçadora de Tesouros”, dos irmãos David e Nathan Zellner, conta uma história sem nada de convencional, toda feita de retalhos de passagens ao acaso num roteiro que nem por isso deixa de ser coeso. Kumiko é a típica oriental. Moradora de Tóquio, trabalha como secretária de uma grande corporação, e detesta o emprego. Não bastasse ser completamente frustrada na carreira, tem de lidar com as cobranças de sua mãe e seu chefe acerca da falta de marido, o que nem de longe é uma preocupação para ela. Sem a exata ideia do que está fazendo com sua vida, sem aspirações, sem planos, Kumiko só pensa em encontrar as riquezas do filme “Fargo” (1996), dirigido pelos irmãos Ethan e Joel Coen, que o personagem de Steve Buscemi escondera na ficção. A narrativa se equilibra entre Japão e Estados Unidos. O roteiro dos irmãos Zellner joga com as susceptibilidades do espectador, fazendo com que se passe a imaginar qual o conflito da personagem. Seria louca? Ou apenas ingênua? Talvez a primeira possibilidade se revelasse verdadeira, haja vista a mediocridade sufocante em que passa seus dias. Sem dúvida, se trata de uma figura completamente gauche, meio farsesca, meio fantástica, mas que se bate contra si mesma, tentando escapar da opressão que é viver sem propósitos. “Kumiko” soa pretensioso, mas dá conta de falar acerca de solidão, melancolia, a dureza da realidade, da qual todos, em maior ou menor medida, já provamos um naco. O filme foi livremente inspirado em eventos reais. A verdadeira Kumiko, Takako Konishi, saiu do Japão aos 28 anos, depois de ser demitida, rumo à América, a fim de encontrar o homem com quem mantinha um relacionamento clandestino. Ao ser encontrada morta, na rua, pouco antes do inverno de 2001, a imprensa marrom tratou de conferir à história um caráter romantizado, e adicionou o elemento “Fargo”. Esclarecido o caso, graças a um bilhete enviado à família e ao registro de uma ligação entre Kumiko e o amante, se ficou sabendo que Kumiko cometera suicídio ao ser preterida pelo companheiro. Jogo metalinguístico de alto nível, “Kumiko, a Caçadora de Tesouros” é um conto de fadas às avessas, comovente, lacrimoso, triste, e, assim mesmo, pleno de beleza. De fato, um tesouro.

Árvore da Vida” chegar ao mais oculto do espectador, e para isso desce ao fundo de si mesmo. Malick, um cavoucador das próprias lembranças, parece estar sempre em busca de algo que o desafie, e acha num enredo quase banal um tesouro. O pulo do gato em seu minucioso roteiro é tentar persuadir quem assiste de que a história daquela família — e, por extensão, a sua — poderia muito bem ser a história de qualquer um e, por que não?, a da humanidade mesma. Para chegar lá, amalgama com cuidado requinte e singeleza, Muito disso sintetizado na impecável fotografia de Emmanuel Lubezki. Sem dúvida um dos grandes mestres em seu ofício, o mexicano traduz as imagens que só o diretor vê em enquadramentos cartesianos, o que não raro torna as palavras supérfluas. A conexão é antes de qualquer coisa axiomática, intuitiva, feito se partilhássemos todos o mesmo sangue, vermelho e triste. Malick brinca com a cadência de seu filme, afastando-o do público, a essa altura já completamente enfeitiçado, para voltar a mantê-lo perto por meio das manobras de Lubezki, com quem tornaria a trabalhar em “Amor Pleno” (2012) e “Cavaleiro de Copas” (2015), mas também dispondo de seus personagens como peças num tabuleiro. Sua pedra mais valiosa nesse instante é o Senhor O’Brien de Brad Pitt, que parece ainda mais distante por jamais por um primeiro nome, da mesma forma que qualquer pessoa crescida.

“O Cavalo de Turim”, laureado com o prêmio especial do júri e vencedor do troféu da crítica no Festival de Berlim, na Alemanha, narra o famoso caso em que Friedrich Nietzsche, indignado com os maus tratos a um cavalo que não obedecia a um carroceiro, interveio e exaltou-se de tal modo que entrou em surto. A frágil condição psíquica de Nietzsche se agravou muito a partir de então; sua saúde mental deteriorava ano a ano, com episódios de histeria cada vez mais frequentes, até a morte do filósofo, dez anos depois. O filme descreve em detalhes onde se passa a história e resta clara a natureza hostil do lugar, à medida em que também faz contrapontos a fim de falar um pouco sobre a personalidade do camponês, dono do animal. Vê-se um homem conduzindo sua carroça fustigado por uma ventania intensa; sua apreensão é captada graças à excelente fotografia em preto e branco de Fred Kelemen e pela música de acordes monótonos de Mihály Vig. Aos poucos, também se percebe o quão esse esplim, esse tédio de tudo se espraia para toda a vida do homem; para ele, não resta além de acordar antes da aurora, vestir-se, sair para trabalhar, voltar, comer e dormir o quanto antes, a fim de que aquele tormento passe. Mas não passa nunca. Circunstâncias que, decreto, levariam qualquer um a tomar as atitudes que tomava. Béla Tarr, um dos mais idiossincrásicos diretores da história do cinema, apresenta um ensaio dolorido sobre o inescapável estado do homem, termo caro à filosofia de Nietzsche, sempre partida entre a ideia da prisão do espírito e a eterna aspiração humana por liberdade.

“A Dupla Vida de Véronique” configura-se como uma espécie de preâmbulo ao que Krzysztof Kieślowski (1941-1996) pretenderia com os filmes que vieram a constar de seu currículo, como se comprova na poética e surpreendente trilogia das três cores, “Azul” (1993), “Branco” (1994) e “Vermelho” (1994). Aqui, Kieślowski assume uma postura muito distinta da aura sagrada daquele conjunto, mas preserva o expediente de lançar mão de metáforas e símbolos, o que realça o aspecto passional de sua produção. Logo no começo da trama, se veem as luzes da cidade substituindo as estrelas num plano invertido, como se o diretor sugerisse a ideia de dois universos em confronto. E é o que se vai ver: duas personagens, a francesa Véronique e Wéronika, polonesa, são vividas pela mesma Irène Jacob. Kieślowski estabelece uma intersecção entre as vidas dessas mulheres, tomando a cautela de pontuar as diferenças entre uma e outra, a pouco e pouco mais evidente conforme segue a narrativa. Seu roteiro, coassinado por Krzysztof Piesiewicz, concentra-se no início na polaca Wéronika, ingênua e mais suscetível a emoções e a agir sob o signo de seus impulsos, sem receio algum de entregar-se a toda sorte de estímulo, encarnação de uma entidade báquica qualquer. Já a francesa, que surge no segundo ato, dá preferência à razão, tem uma personalidade de contemplação frente à vida e controla seus desejos, deixando à mostra um pendor apolínico. Não se depreende do enredo se trata-se de fato de duas mulheres ou das duas faces de uma mulher só, uma dúvida que Kieślowski parece gostar de incutir no espectador, capaz de perceber que uma responde aos ímpetos da outra e que a atmosfera enigmática da história reside justamente aí.

Numa área determinada de um país desconhecido, nenhuma lei se aplica, nem mesmo a mais elementar e universal, como a da gravidade, depois que o lugar fora atingido por um corpo celeste — ou alguma coisa do gênero. A Zona, como o território estranhamente passou a ser chamado, é alçada à cobiça internacional graças a um espaço no qual se podem concretizar todos os sonhos de quem quer seja. Temendo a comoção de povos do mundo todo e a iminente usurpação da terra, forças de segurança realizam patrulhas e encarceram possíveis invasores. Só os perseguidores, os stalkers, apresentam fibra o bastante a fim de acessar os limites da Zona e continuar vivos nesse torrão idílico e cheio de mistérios e riscos. Um deles é contratado como guia de um cientista e um escritor, ávidos por conhecer o que é a Zona de verdade.

Uma civilização ancestral parece influenciar o que se passa na Terra por meio de um monolito localizado em Júpiter, sobre o qual não se sabe muita coisa. A fim de averiguar o que realmente está acontecendo, uma equipe de astronautas chefiados pelo experiente David Bowman é mandada ao planeta na Discovery, uma espaçonave integralmente controlada por HAL 9000, um sistema de computador. Durante a viagem, um mecanismo em HAL entende que ele deve assumir também o comando da missão e eliminar todos os tripulantes. “2001: Uma Odisseia no Espaço”, em parte baseado no conto “A Sentinela”, de Arthur C. Clarke (1917-2008) discorre acerca de tópicos como a evolução do homem, tecnologia, inteligência artificial e vida fora da Terra à luz da ciência. O filme foi um dos primeiros a empregar efeitos especiais de qualidade apurada, o que lhe rendeu um Oscar na categoria e ditou regra nas produções de ficção científica a partir de então.

Passada uma década, um guerreiro volta de uma série de batalhas em que combatia a fim de manter a Terra Santa sob domínio cristão, as Cruzadas (1095-1291) e se depara com o país assolado por uma praga, a peste negra. Habilidoso como ninguém quanto a expor as tantas fraquezas do homem à luz do conhecimento filosófico, Ingmar Bergman (1918-2007) fala sobre a hesitação mesmo do mais nobre dos indivíduos ante cenários desfavoráveis, lúgubres, miseráveis, amaldiçoados pela Morte, que em “O Sétimo Selo” adquire status de personagem e deseja, como sói acontecer, abreviar as pelejas do herói, que, mesmo negando, por completo descrente de tudo e tomado pelo cansaço da vida, anseia mesmo por sua última viagem. Na undécima hora, reconsidera e propõe à sua oponente um desafio no tabuleiro de xadrez: se perder, vai-se com ela, que topa a parada, afinal desde o princípio dos tempos nunca perdeu uma aposta. Na trama, o gênio de Bergman, tal como o Tolstói (1828-1910) de “A Morte de Ivan ÍIitch”, publicado em 1886, dirige ao espectador a pergunta que cala mais fundo sobre a alma de um indivíduo. O que fazer diante da finitude, única certeza a reger a vida?