O melhor filme que você verá este mês na Netflix — a história real que deu início ao #MeToo e que Hollywood tentou silenciar

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A primeira coisa que vem à cabeça diante de um enredo como o de “Ela Disse” é a velha máxima que reza que ninguém engana a todos por todo o tempo, muito menos para sempre. Conquanto verdadeira, essa ideia pode levar uma eternidade para converter-se em justiça de fato, a despeito dos esforços incansáveis de quem esteja nos bastidores, perseguindo um furo que pode botar um ponto final a uma série de iniquidades, moldando uma transformação nos costumes e nos rumos da História. Em 5 de outubro de 2017, meses de uma investigação minuciosa deram numa reportagem bombástica do “New York Times”, em cujas linhas veio a público um escândalo já notório entre tubarões da indústria do cinema e belas atrizes em ascensão. Responsável por filmes que arrecadaram bilheterias milionárias e que receberam dezenas de indicações ao Oscar, Harvey Weinstein era também um predador sexual em série cujos abusos já faziam parte da folha de pagamentos da Miramax. As vítimas de Weinstein eram coagidas a assinar acordos de confidencialidade e a aceitar dinheiro para manter o caso longe do escrutínio da imprensa. Até duas corajosas repórteres furarem a bolha.

A diretora Maria Schrader tira do roteiro de Rebecca Lenkiewicz boas oportunidades para mostrar a odisseia de Jodi Kantor e Megan Twohey, heroicamente empenhadas em tirar a limpo a história e colher os depoimentos das mulheres perseguidas e molestadas por Weinstein, secretárias e assistentes de direção anônimas e atrizes como Rose McGowan e  Gwyneth Paltrow, que reagiram de maneiras distintas e, claro, tiveram sortes diferentes. Baseado no livro-reportagem homônimo de Kantor e Twohey, de 2019, “Ela Disse” entra para o rol de longas que esgaravatam a sujeira por baixo de grandes corporações, a exemplo de “O Escândalo” (2019), levado à tela por Jay Roach; “Spotlight: Segredos Revelados” (2015), dirigido por Tom McCarthy; e “Todos os Homens do Presidente” (1976), de Alan J. Pakula (1928-1998), nessa ordem, cada qual mirando um veio específico da ruína ética de um patriarcado hipócrita e alheio a miudezas como direitos humanos e afins. E o faz evitando facilidades como o melodrama e o sensacionalismo, preferindo uma abordagem quase neutra, mas tocante, que enfatiza o impacto emocional do trabalho das jornalistas. Trata-se, sobretudo, de dar voz às vítimas — mulheres que, durante anos, foram silenciadas, conduzidas ao descrédito ou forçadas a botar uma pedra sobre o assunto e lidar sozinhas com o trauma.

Schrader opta por uma direção que evita expor as cenas de abuso de forma gráfica. Em vez disso, o horror está nos relatos das vítimas, nas suas pausas, nos olhares perdidos, nos silêncios carregados de dor. Essa escolha confere ao filme um respeito essencial às sobreviventes, colocando a atenção no trauma e não no agressor. A redação do “The New York Times”, no edifício vistoso da Oitava Avenida, é retratada com fidelidade. A rotina dos jornalistas, os dilemas éticos e legais, as dificuldades em convencer fontes a falar e o medo generalizado das consequências são apresentados com realismo. O filme não glamoriza o expediente jornalístico, mas o mostra como um trabalho árduo, muitas vezes invisível, e feito com persistência e empatia. Um dos pontos altos do longa é a maneira como ele mostra o impacto do assédio sexual na vida das vítimas: não apenas como um evento isolado, mas como uma força que molda carreiras, destrói autoestima e impõe um silêncio que perpetua a violência. Essa elegância no que é contado deve-se em grande medida às performances entre sóbrias e passionais de Zoe Kazan e Carey Mulligan, acompanhadas de perto por Patricia Clarkson e Andre Braugher (1962-2023) na pele dos editores Rebecca Corbett e Dean Baquet, o esteio moral de Kantor e Twohey.

“Ela Disse” é um filme memorável particularmente pela honestidade com que esgrime um tema doído, na homenagem que presta ao jornalismo sério e na coragem de denunciar as estruturas arcaicas que perpetuam crimes. Ainda que Weinstein nunca apareça no decorrer dos 130 minutos de projeção e apenas se ouça sua voz num tom sempre intimidatório, sabe-se que ele é real. Harvey Weinstein cumpre 23 anos de cadeia por agressão sexual e estupro, mas os violentadores, ainda que ganhem os holofotes, não param — e até chegam à Casa Branca. Que gente como Kantor e Twohey nunca deixem de surgir.

Filme: Ela Disse
Diretor: Maria Schrader
Ano: 2022
Gênero: Biografia/Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.