Os anos se sucedem, a humanidade faz alguns progressos, comete outros tantos deslizes, mas uma pergunta não deixa de reverberar ao longo dos anos: até onde pode ir o furor do homem por poder? O expediente de subjugar a fim de fazer valer a sua própria vontade é uma constante nas sociedades de qualquer país, a despeito da época que se deseje considerar. Tomando-se por exemplo a América Latina da primeira metade do século 21, é assustador pensar que regimes autocráticos — seja centrados na figura de um único caudilho, logo encarado com epítetos sentimentaloides como “pai da Pátria”, “pai do povo”, “comandante”, seja distribuídos por um grupo “selecionado”, composto, na maior parte das vezes, por militares — adquiriram a abominável natureza de verdadeira epidemia, nefanda, mortal, como só as epidemias sabem ser.
Nas muitas entrevistas que concedeu quando do lançamento de “A Noite de 12 Anos”, de Álvaro Brechner, José Alberto “Pepe” Mujica Cordano (1935-2025), político como nunca, relembrou os muitos opróbrios a que fora sujeitado pelo Exército uruguaio enquanto esteve preso: acabara perdendo os dentes por causa das surras — e certamente a imundície em que viviam, ele, o dramaturgo, poeta e jornalista Mauricio Rosencof, o Ruso, prestes a completar 92 anos; e o jornalista e escritor Eleutério Fernández Huidobro, o Ñato (1942-2016), ministro da Defesa durante o futuro governo de Mujica, entre 1º de março de 2010 e 1º de março de 2015 — deu sua colaboração; tivera de tomar a própria urina para não morrer de sede e servira de alvo a simulações de fuzilamento, uma das quais resultou numa perfuração a bala de verdade. A esse propósito, ao longo de mais de duas horas, há apenas uma sequência em é que concedido aos revoltosos direito a tomar banho, justamente quando se encontram com seus familiares pela primeira vez.
Numa das passagens mais didáticas do filme — essa, sim, escatológica e, igualmente por isso, emblemática do que é a estupidez de uma ditadura —, Ñato implora ao soldado que o guiara à latrina para que o libere das algemas, presas ao cano da descarga, que o impediam de se acocorar. O soldado diz que não está autorizado e chama o sargento; o sargento também não tem essa licença, e chama o tenente, que por sua vez chama outro superior. No fim, com o banheiro já cheio de autoridades, chega o comandante do regimento que, perplexo com o que encontra, brada um impropério, dá meia-volta, e os subordinados vão todos atrás, restando apenas Ñato, nas algemas — e constipado.
O tragicômico no roteiro de “A Noite de 12 Anos” é uma pequena mostra da hediondez de uma tirania em seu estado mais cru, mas Ruso, Ñato e Pepe dedicavam-se a subverter a ordem muito antes da ditadura se instalar no Uruguai — e quem sabe por isso os militares lhe reservassem tantas dessas pequenas vinganças, além das realmente dolorosas, para o corpo e para o espírito. Militantes dos Tupamaros, guerrilha de orientação marxista-leninista fundada em 1963 — dez anos antes da supressão da democracia uruguaia, portanto —, eles logo se destacaram em ações criminosas, como saques de armazéns e roubos a bancos, e foram revestidos de uma falsa aura mítica, uma santidade rebelde ou uma rebeldia santa, Robin Hoods modernos da periferia do globo que distribuíam o espólio de seus delitos entre os mais humildes. A reverência com chapéu alheio custou-lhes mais de 4.300 dias no xadrez. Teria valido a pena?
É muito difícil se especular quanto de idealismo genuíno, malgrado ingênuo, e que parcela de frio cálculo político pode haver na conduta de um personagem como Pepe Mujica, passados quarenta anos de sua libertação, eleito presidente do Uruguai aos 75 anos. Semanas antes de finalmente sucumbir a um câncer esofágico ontem, 13 de maio de 2025, o velho Tupamaro esqueceu um pouco a diplomacia do expediente político, que sempre fede a demagogia e cinismo, e fez um balanço comovente de uma trajetória invejável, frequente-se a enfermaria ideológica que se queira frequentar.
Mujica, um estoico convicto, lembrou dos anos de cárcere, quando tinha-se pelo mais felizardo dos homens ao receber um colchão para deitar o corpo trucidado pelas sessões de espancamento, pau-de-arara, choques elétricos, arrematando, com brilhantismo que aquele que não é feliz no pouco não o será no muito. O Uruguai nunca foi uma potência nem mesmo neste mundo global visto do lado de cá — para lembrar o excelente documentário de Silvio Tendler acerca das posições técnicas e sentimentais do geógrafo baiano Milton Santos (1926-2001) no que toca ao lugar efetivo das periferias da Terra na tal globalização —, mas os contínuos investimentos em infraestrutura, a busca por serviços de saúde e educação de qualidade, forças policiais bem-treinadas e, mais importante, a cultura de respeito aos direitos humanos fizeram de nossos vizinhos uma sociedade inclusiva, o primeiro na América do Sul a legalizar o aborto e a regulamentar o consumo de maconha e o segundo a reconhecer o casamento gay. Além de castigar com rigor seus corruptos.
Apesar de abundarem nos veículos de comunicação imagens do então mandatário indo trabalhar a bordo de seu Fusca azul-celeste modelo 1987; de ele nunca ter se mudado para o Palácio de Suárez e ter permanecido na chácara em Camino el Colorado, zona rural de Montevidéu, onde sempre morou; e haver repassado 90% de seu salário para instituições filantrópicas, Mujica, segundo seus adversários, estaria encalacrado por causa de contratos obscuros com a construtora OAS — a exemplo de seu amigo Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil pela terceira vez desde 1º de janeiro de 2023. As investigações perderam força desde que ele renunciou ao mandato de senador em 2018, aos 82 anos, queixando-se de “cansaço”. Sua mulher, Lucía Topolansky, continua senadora.
O senso comum consagrou a máxima que reza que o poder revela a legítima natureza dos homens. Mencionando o gênio de Franz Kafka (1883-1924), citado na epígrafe de “A Noite de 12 Anos”, a política pode ser para determinadas sociedades uma mistura indigesta de “A Metamorfose” (1915) e “O Processo” (1925), em que ninguém nunca sabe com quem está lidando. Dinheiro não é tudo; política pode ser. Mujica nunca foi unanimidade, e esse talvez seja seu maior atributo. Como político e como homem.
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