Um dos maiores defensores da economia de mercado e da livre concorrência, o filósofo e economista escocês Adam Smith (1723-1790), homem dos Setecentos, o feérico Século das Luzes, época de revoluções lapidares nas artes, na ciência e na economia, provou-se um visionário, alguém que enxergava o mundo e o compreendia muito além do que seu próprio tempo poderia permitir. A humanidade conheceu logo do que era capaz o gênio de Smith, responsável por elaborar uma das teorias mais completas acerca do liberalismo econômico, doutrina que, por sua vez, serviu de base para a fundamentação do capitalismo moderno.
Avesso a maiores interferências do Estado na condução da economia, o liberalismo prega também que os indivíduos — e, por extensão, os consumidores — são livres para escolher que empresas desejam solicitar, e o consumidor opta, evidentemente, por aquelas que lhe proporcionam um produto ou atividade laboral mais bem-acabada, sem comprometer o bolso. Na busca por prestar melhores serviços, as empresas se autorregulam e se aprimoram, uma espécie de darwinismo vertido para o contexto mercantil. A disputa mercantil é imprescindível a fim de que se preservem as próprias corporações, tenham a dimensão que tiverem. No caso das grandes — e, em especial, das muito grandes —, a discussão tem a natureza de uma verdadeira guerra de titãs, com cabeças rolando para todos os lados. Com o aprimoramento da ciência e dos mecanismos dos mais diversos setores do conhecimento humano, as empresas de comunicação mais experientes, a exemplo da Rede Globo de Televisão, tiveram de se reinventar.
O desinteresse crescente do público por assistir tevê — pelo menos da forma como vinha fazendo nos últimos cinquenta anos — acendeu a luz amarela. A Globo criou o Globoplay, plataforma de vídeos, filmes e programas da emissora disponíveis em streaming, mas antes dela já havia a Amazon Prime Video e, antes ainda, a Netflix, no ramo do cinema há 28 anos. A programação da veterana nesse nicho mais recente da comunicação e do entretenimento tem sido uma referência quanto a apresentar conteúdo plural, de grande importância artística e primando pela qualidade técnica. Há catorze anos no Brasil e há dez incluindo em seu acervo, além de longas que pautam a indústria cinematográfica, produções feitas sob encomenda, dirigidas, protagonizadas e distribuídas por seus próprios meios, a Netflix tornou-se sinônimo do tal cinema em casa, de que ouvíamos falar em eras vetustas.
A Bula já publicou centenas de listas com os melhores títulos do cinema reunidos pela Netflix, e dessa vez enaltecemos a dezena daqueles que mais conseguiram capturar a atenção do brasileiro. Pertinaz, o francês Guillaume Pierret abre o compêndio com “Bala Perdida 3” (2025), sobre um criminoso especializado em construir e equipar veículos para roubos multimilionários, dando cabo da franquia (de forma um tanto melancólica, aliás). Fecha o rol o jocoso “Alvin e os Esquilos 3” (2011), de Mike Mitchell, mais uma aventura dos roedores criados por Ross Bagdasarian (1919-1972), marca registrada da série. Como se pode ver, a Netflix veio para ficar, sempre contando com muitas opções para tirá-lo da mesmice. Que venham os próximos catorze anos.
Bala Perdida 3 (2025), de Guillaume Pierret

Mesmo os heróis têm suas dores, e talvez essa seja a sua grande qualidade. Vencer tragédias pessoais é, em muitos casos, mais uma questão de pragmatismo que de vontade, propriamente. Há que se passar por cima daqueles sentimentos tão destrutivos quanto resistentes que barram os próximos passos que poderíamos dar, que temos de dar para que a vida recupere sua dimensão nobre, decisão de fato complexa, mas transformadora. Uma vez que se opta por virar-se a página, com tudo quanto pode existir de árduo nisso, abre-se espaço para que sucedam experiências quiçá nem tão ditosas, mas com outra carga de drama, outras cores, ao menos para os que se contentam em ser simples mortais. Heróis, entretanto, obedecem a outra lógica, até (ou principalmente) nisso: essa é apenas uma das impressões a se tirar de “Bala Perdida 3”, a última sequência de thrillers do francês Guillaume Pierret e continuação de uma história de busca por reparação e muito rancor. Pierret recorre a flashbacks dos dois longas anteriores, também dirigidos por ele, sobre um criminoso especializado em construir e equipar veículos para roubos multimilionários, para situar o público no enredo, que continua a seguir a lógica de contrapor bem e mal, enquanto vão surgindo outros elementos que conferem um verniz noir à história, bem ao gosto da tradição francesa.

Há uma tragédia em “Má Influência”, mas bem que poderiam haver mais. O filme da espanhola Chloe Wallace segue a tendência das histórias que começam como comédias (quase) românticas e evoluem para thrillers que flutuam entre a tensão sexual e a prevalência de índoles diabólicas, eivando de maldição aqueles em que tocam. O roteiro de Wallace e Diana Muro está assentado no fluxo de consciência de uma vilã que só se revela na undécima hora, cereja de um bolo meio insulso que só faz voltar a receitas já testadas antes. “Má Influência” surfa na onda de livros e filmes sobre os dissabores e as epifanias de gente naquela fase complexa definida pelo ocaso da adolescência e o princípio da vida adulta. Conflitos intergeracionais entre um pai superprotetor e uma filha mimada dão o tom do enredo, e aos poucos se começa a saber aonde Wallace quer chegar. Reese Russell, a patricinha da vez, passa a receber ameaças anônimas, que podem vir de algum desafeto do pai, Bruce, um ricaço conhecido pela arrogância invencível. Cheio de possibilidades, o personagem de Enrique Arce é desperdiçado em nome da urgência de se desenvolver o mote central, direcionado à aproximação paulatina entre Reese e Eros, um ex-presidiário que Bruce contrata com o intuito de servir de guarda-costas para a moça. Eles não conseguem afinar os ponteiros, claro, e chega a ser vexatória a previsibilidade do que vem a acontecer na sequência, ou seja, a paixão de Reese e Eros, malgrado a falta sintonia entre Eléa Rochera e Alberto Olmo se mantenha.

Sara Wulf, a protagonista de “Exterritorial”, enfrenta grandes dificuldades para vencer aquelas etapas em que já não nos dominamos mais, tragada por uma cornucópia de perigos que extrapolam o real. Christian Zübert situa sua anti-heroína, uma veterana da Guerra do Afeganistão (2001-2021), no terreno pantanoso das lembranças e traumas, conjuntura estarrecedora o bastante para fazer com que seja tida por insana em mais uma prova de fogo. Na abertura, o diretor-roteirista recorre a um flashback rápido para explicar que Sara tivera uma vida feliz ao lado de Evan, então um soldado das forças especiais feito ela, que aparece comendo batatas fritas num parque sob a luz difusa do sol — lugar-comum que se aplica perfeitamente aqui —, ao lado do filho, Josh, de três anos. Quatro anos depois, Sara dirige-se até o consulado americano em Frankfurt para ver se consegue um visto de trabalho nos Estados Unidos, terra de Evan, que morrera em combate. Parece que tudo vai sair como o esperado: Sara e Josh, encaminham-se ansiosos para o salão de atendimento, mas uma vez que o tempo avança, pessoas que chegaram depois são chamadas e eles continuam lá, Sara leva o garoto até à brinquedoteca, e então mergulha num pesadelo quando volta e não o encontra.

Para tentar entender a mente de um criminoso, é comum e mesmo recomendável procurar algum resquícios de humanidade em suas ações. Há diversas linhas de estudos quanto a conjecturar o jeito mais eficaz de se chegar ao íntimo de pessoas que muitas vezes já perderam os possíveis elos cívicos com o mundo exterior, restando no fundo só uma personalidade doentia, sedenta de reparações que só elas admitem como justas. “O Plano Perfeito 2” é um desses arrasa-quarteirões tipicamente hollywoodianos, que apostam fábulas em tecnologia aspirando a multiplicar seu orçamento em algumas vezes. Foi o que se deu em 2006, quando Spike Lee lançou “O Plano Perfeito”, cujo investimento de 45 milhões de dólares virou uma bilheteria de mais de 186 milhões, e então acharam uma boa ideia repetir a dose. Acontece que M.J. Bassett não tem o talento de Lee e faz o que pode para conferir autenticidade e algum sentido a história de um negociador de reféns e uma agente do FBI que precisam superar diferenças e empenhar-se para desvendar o que existe por trás de um assalto tão repentino quanto meticuloso, em papéis que foram de Denzel Washington e Jodie Foster.

Uma garota selvagem da Carolina do Norte suporta os desmandos de uma existência de privações no que pode haver de mais básico até que começa a virar a mesa, pagando um preço alto por sua liberdade. “Um Lugar Bem Longe Daqui”, a adaptação de Olivia Newman para “Where the Crawdads Sing”, o romance da americana Delia Owens, publicado em 2018 e traduzido com o mesmo título que o filme, é o grito de socorro de um espírito atormentado, mas não só. O roteiro de Owens e Lucy Alibar oscila entre três fases da história de Catherine Danielle Clark, a Kya, nos pântanos da fictícia Barkley Cove, escapando de um pai bêbado e abusivo para cair nas mãos de um pretendente que a ilude com juras de amor que não pode cumprir até que sobrevenha-lhe a desgraça que por pouco não a arruína. Alibar também roteirizou, com Benh Zeitlin, “Indomável Sonhadora” (2012), dirigido por Zeitlin e baseado no livro de contos de Doris Betts (1932-2012), e, por mais original que consiga ser, o trabalho de Newman reflete essas outras histórias de mulheres aprisionadas em sua condição feminina, o que fortalece seu propósito.

“Não há nada que um pai não faça pelo filho”. Assim começa “Velozes e Furiosos 10”, o mais recente produto da série capitaneada por Vin Diesel, muito menos famoso que Dominic Toretto, seu personagem há 23 anos numa das séries mais longevas e rendosas já feitas pelo cinema em todos os tempos — “Velozes e Furiosos 7” (2015), de James Wan, angariou mais de bilhão e meio de dólares em todo o mundo, façanha admirável sob qualquer ponto de vista. Aqui, Louis Leterrier se empenha em transformar o que parece ser o epílogo da saga de um clã de arruaceiros motorizados em cidadãos exemplares, especialmente compungidos quando se trata de defender a família e os inúmeros apaniguados que completam a gangue. Lamentavelmente, ainda falta um bocado que “Velozes e Furiosos” exale seu derradeiro suspiro — “Velozes e Furiosos 10 — Parte 2” está previsto para estrear em 2025 —; enquanto isso, Leterrier replica os chavões que vêm dando certo nas mãos de vários diretores, o que, na verdade, passa em branco por fãs já entorpecidos pelo cheiro de borracha queimada que se mistura com adrenalina.

“Nonnas” (2025), novo filme da Netflix dirigido por Stephen Chbosky, é uma comovente história sobre luto, memórias afetivas e renascimento. Chbosky narra a história de Joe, um homem de meia-idade que, após perder a mãe, encontra consolo nas lembranças das comidas feitas por ela e sua avó. Movido pela saudade, Joe decide investir a herança em um restaurante especial, contando com a ajuda de amigas e quatro senhoras que preparam receitas tradicionais com amor e dedicação. O filme começa com uma atmosfera melancólica, reforçada por cores frias que refletem a dor da morte. Aos poucos, essa tristeza dá lugar à esperança, ao calor das relações humanas e à redescoberta da alegria por meio da culinária. “Nonnas” se destaca pela leveza com que trata temas profundos como envelhecimento, tradição, empreendedorismo e volta às raízes, num texto simples e direto. Malgrado recorra a alguns clichês, a força emocional e a autenticidade da história prevalecem. Com personagens carismáticos, o longa emociona, despertando não só o apetite, mas também memórias afetivas do público. “Nonnas” é uma celebração do amor, do bom paladar e da vida.

“As Namoradas do Papai” (1995) é uma comédia familiar leve, inspirada em “O Príncipe e o Mendigo” (1881), de Mark Twain (1835-1910). O filme gira em torno de duas meninas idênticas, Amanda, uma órfã prestes a ser adotada por uma família cruel, e Alyssa, filha de um bilionário viúvo prestes a se casar com uma mulher interesseira. Quando elas se conhecem por acaso, decidem trocar de vidas e conspirar para unir o pai de Alyssa com Diane, a assistente social de Amanda. A previsibilidade da trama, plena de lugares-comuns, não é capaz de eclipsar o carisma do elenco. As gêmeas Mary-Kate e Ashley Olsen se destacam como protagonistas, enquanto Kirstie Alley (1951-2022) e Steve Guttenberg emprestam a seus personagens uma providencial comicidade. Perseguições e guinadas improváveis em cenas divertidamente nonsense são o pulo do gato de Andy Tennant, o diretor, que reforça a aura farsesca por meio de espionagens inconsequentes, disfarces malfeitos e vilões caricatos. Ainda que não traga grande surpresa, “As Namoradas do Papai” entretém com uma sua fórmula leve e um toque de romance, amalgamados de modo a levar a um final feliz.

Depois de sete longos anos, Gareth Evans volta a mergulhar no universo das gangues em “Caos e Destruição”, título bastante apropriado para seu novo filme, todo permeado pela violência que já tornou-se uma sua marca. Ao longo de 107 minutos, o texto de Evans descortina figuras encarceradas em perturbações diversas, sem prejuízo do comentário social acerca das relações promíscuas entre o Estado e o crime. Admiravelmente, esse dom para vislumbrar possíveis laços sinistros envolvendo criminosos e quem teria a obrigação de zelar pela higidez da coisa pública ganha forma por meio de tipos humanos prosaicos, mas que vão adquirindo vulto conforme o enredo mostra que não tem intenção alguma de obedecer à vontade do espectador e sempre encontra um jeito de surpreendê-lo. Aqui, o diretor-roteirista fala de um detetive maldito e um tanto angustiado pela urgência de esquecer o que foi, um protagonista à altura das aflições que ele mesmo não oculta, demônios contra os quais investe como melhor sabe.

“Alvin e os Esquilos 3” (2011) traz os adoráveis roedores criados por Ross Bagdasarian (1919-1972) em mais uma aventura, marca registrada da franquia, a cargo de Mike Mitchell. Desta vez, Alvin, Simon, Theodore e as esquiletes partem com Dave a bordo de um cruzeiro, mas acabam isolados numa ilha após mais uma das travessuras do endiabrado Alvin. A mudança de cenário resulta num filme mais contido e que exalta valores como retidão e amizade e a importância do autoconhecimento. Embora ainda padecendo de um sem-fim de vozes estridentes e musicais, o longa se destaca por investir no alcance ao público infantil, com lições quase imperceptíveis sobre assuntos tão espinhosos quanto necessários, como sustentabilidade e pertencimento, evitando apenas reproduzir fórmulas. Cada personagem é desafiado a encarar suas falhas, o que estimula a abordagem da trama sob o ponto de vista moral. O retorno de Jason Lee como Dave deixa a história mais firme e coesa, uma sutil diferença sobre a produção anterior, que mirava as crianças, mas se esquecia de quem pagava-lhes o ingresso.