“Burlesque” — Cher e Christina Aguilera entregam entretenimento completo em filme na Netflix Divulgação / Sony Pictures

“Burlesque” — Cher e Christina Aguilera entregam entretenimento completo em filme na Netflix

Há filmes que, por sua estética extravagante ou seu apelo popular, são relegados automaticamente à categoria do descartável. “Burlesque” é um desses casos emblemáticos. Sob sua camada reluzente de plumas, maquiagem pesada e canções poderosas, esconde-se uma afirmação desafiadora: a de que leveza não é sinônimo de futilidade. O longa, muitas vezes subestimado por seu formato musical e narrativa linear, promove uma celebração explícita do poder performático, da construção de identidade através do palco e da força de personagens que, embora envoltos em brilho, sabem exatamente o que estão fazendo — inclusive quando fingem não saber.

Christina Aguilera, em sua estreia como protagonista, não tenta ser o que não é. Sua Ali não carrega dilemas filosóficos nem uma trajetória dramática de autodescoberta dolorosa. Em vez disso, ela entra em cena com o desassombro de quem compreende instintivamente o espaço que ocupa e como utilizá-lo. Sua performance não tenta se moldar a padrões cinematográficos clássicos, e é justamente por isso que funciona. Aguilera faz do palco sua casa, e do close um espelho onde o público vê não só uma personagem, mas uma performer no auge de sua força vocal e magnética presença. A previsibilidade de sua ascensão — da garota ingênua à estrela de neon — não compromete o impacto, pois o encanto está na forma como cada passo dessa jornada é conduzido com domínio técnico e carisma genuíno.

Mais do que um musical, Burlesque funciona como um manifesto visual e sonoro da autoconfiança feminina, onde os arquétipos são tensionados a favor de um protagonismo que se sustenta por brilho próprio, literalmente. A suposta superficialidade da trama é, na verdade, uma estrutura inteligente: ao evitar grandes conflitos ou densas construções psicológicas, o roteiro oferece espaço para que a linguagem corporal, a música e a atmosfera visual conduzam o espectador por uma narrativa de sentidos. O filme sabe que seu universo é hiperbólico e não tenta atenuar isso — pelo contrário, transforma o exagero em poética cênica.

Nesse cenário, Cher assume o papel de guardiã do templo. Tess, sua personagem, não é apenas a proprietária do clube: é a personificação da memória do palco, a voz da experiência que se manifesta tanto nos agudos emocionais quanto na dureza prática de manter o espetáculo em pé. Sua presença serve de ancoragem para a leveza do resto do elenco. Quando ela canta “You Haven’t Seen the Last of Me”, o filme deixa de ser entretenimento para se tornar ritual de sobrevivência artística. É o momento em que a dor contida transborda, mas sem apelar para dramatizações baratas — uma dor que se sustenta em voz e presença, e que confere profundidade a um universo que muitos insistem em rotular de vazio.

Stanley Tucci, por sua vez, não está ali apenas para adicionar humor. Seu Sean é o equilíbrio entre ironia e acolhimento, entre o escárnio afetuoso e a sabedoria silenciosa. Ele habita o filme como um elo afetivo que resgata uma tradição esquecida dos musicais: a de que o coadjuvante pode ser o verdadeiro fio condutor emocional. Sean representa o olhar cúmplice, aquele que vê tudo, julga pouco e oferece apoio com uma ironia que nunca machuca. Sua presença é essencial para que o palco não se torne apenas espetáculo, mas também lar.

E se Nikki, vivida por Kristen Bell, parece inicialmente mais um estereótipo da rival amarga, basta observar sua dança — não há espaço para mediocridade em seus movimentos. Sua frustração é construída com nuances: não se trata de inveja gratuita, mas de quem enxerga sua posição ameaçada em um ecossistema onde o novo sempre corre o risco de engolir o que já brilhou. O elenco de apoio, por sua vez, completa o quadro com precisão: Julianne Hough e Chelsea Traille incorporam a irmandade silenciosa do backstage; Cam Gigandet e Eric Dane oferecem as tensões amorosas e financeiras sem roubar a cena principal — até porque a cena principal está sempre nas mãos das mulheres.

Se há algo que Burlesque realiza com excelência é o abandono da vergonha de ser espetáculo. Em um tempo em que muitos filmes se escondem atrás de roteiros excessivamente densos para provar seu valor artístico, aqui o prazer da performance é assumido com orgulho. As canções, os figurinos e as coreografias não estão a serviço da história — eles são a história. O roteiro não desperdiça tempo com diálogos expositivos ou monólogos pretensamente profundos. Em vez disso, permite que a música substitua a palavra, que o corpo fale por si, que o olhar resolva o que um parágrafo inteiro não diria melhor.

A campanha de divulgação, ao focar quase exclusivamente na “batalha vocal” entre Cher e Aguilera, falhou em compreender o espírito coletivo que sustenta o filme. Reduzir “Burlesque” a uma vitrine de divas é ignorar o conjunto que faz sua engrenagem funcionar com precisão milimétrica. A ausência dos coadjuvantes na promoção do filme — nomes como Tucci, Peter Gallagher ou Alan Cumming — revela uma miopia estratégica: o público foi convidado a assistir a um duelo, mas encontrou uma constelação.

É possível, portanto, que “Burlesque” incomode não por suas supostas limitações, mas por aquilo que tem coragem de ser: um musical que se recusa a se justificar. Ele não oferece desculpas por entreter, nem tenta revestir sua estética com camadas de gravidade artificial. Em tempos de filtros e discursos sobre autenticidade, há algo radicalmente sincero em uma história que aposta todas as suas fichas na potência da performance. A superficialidade, aqui, é uma escolha estética — e uma provocação.

Filme: Burlesque
Diretor: Steve Antin
Ano: 2010
Gênero: Drama/Musical/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★