A qualquer momento da vida podemos nos sentir perigosamente sós, como se desterrados em nossa própria existência, presos numa quietude atroadora, implorando pela compaixão de alguém, e quanto mais consome-nos a angústia, mais nos apercebemos do quão perdidos estamos em nosso próprio desespero, ansiando por um salvador que não vem nunca, que não nos quer conhecer, que tem-nos desprezo. Quanto mais longe fica o homem do mundo, mais se aproxima de sua própria alma; seus mistérios, ainda que sempre absorventes, tornam-se menos indóceis, e a vida até parece mais fácil, uma vez que põe-se mais alerta e não se flagra vítima dos delírios que ele mesmo teima em criar. O homem passa a vida defendendo-se de seus próprios impulsos, abafando a vontade de rebelar-se contra toda a insana fantasia que o cerca, e dessa forma refina o propósito de se aperfeiçoar, de fazer da permanência neste plano um tempo menos atribulado e mais aprazível.
O amor está sempre à espreita, como a grande ameaça da vida. Apaixonar-se pode ser a perdição irreparável de alguém, sobretudo se o sentimento avassalador de saber-se possuído pela vontade de estar além da própria pele vem demasiado cedo, mas viver nunca foi um problema matemático, cujo frio resultado não encerra nenhuma outra possibilidade. Faz-se necessário experimentar, arriscar-se, flertar com o perigo muitas vezes para, talvez, começar a entender que a vida tem seus próprios mandamentos. Escapando de determinadas armadilhas para permitir-se capturar por outras tantas, ledamente, fazemos da existência a arte de saber se esquivar e de gostar de sofrer. Antes mesmo que o galo cante pela terceira vez numa madrugada chuvosa, certo de que sem essa sua doida empreitada o mundo estará condenado às trevas de uma noite sem fim, já teremos também nós nos submetido aos mil açoites do carrasco inexpugnável que nos habita, indignado por termos aberto a única porta que deveríamos manter fechada, se não para sempre, pelo maior tempo possível.
Os sete filmes que escolhemos para esta lista, as estreias mais emocionantes dos últimos doze meses até o momento, espelham, cada qual a seu modo, essa tentativa de imprimir alguma ordem na caótica jornada humana aqui embaixo. Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, Jesse Eisenberg faz de “A Verdadeira Dor” uma estreia promissora na direção, comovendo e erigindo reflexões ao esmiuçar uma das chagas da humanidade pelos olhos de dois primos, interpretados por Eisenberg e Kieran Culkin, premiado pela Academia como Melhor Ator Coadjuvante. Da mesma forma que Benjamin Kaplan, o personagem de Culkin, Karoline Nielsen também balança na delgada corda do existir. Desvalida, a protagonista de “A Garota da Agulha” padece de um achaque moral que resiste ao tempo, exposto de maneira didática pelo sueco Magnus von Horn, mas sem prejuízo da afronta intelectual e da beleza da fotografia em preto e branco, o que lhe valeu a nomeação ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, um ano particularmente fecundo e jubiloso no cinema. As produções vêm elencadas em ordem alfabética.

Num mundo em que redes sociais tornaram-se apenas mero pretexto para se destilar ódio; num tempo em que as pessoas fazem questão de manifestar seu desprezo umas pelas outras; com uma humanidade passiva diante do sofrimento que vem da ignorância em sua forma mais crua, a guerra, ainda faz sentido se falar em bondade? Ainda na infância, o mundo vai se nos revelando um lugar surpreendentemente hostil, onde somos forçados a medir cada palavra e estudar todo gesto, sob pena de ter de arcar com consequências pesadas demais para nossos ombros estreitos, onde flutua uma cabecinha deveras sonhadora. Ao contrário de quase todas as outras crianças da mesma idade, Anuja sabe que o mundo não gira em torno do seu umbigo, no que se assemelha um tanto à Alice de Lewis Carroll (1832-1898), embora muito menos doce, talvez dotada de muito mais personalidade. Anuja, a personagem-título do curta de Adam J. Graves, perambula pelos espaços públicos de Délhi, a segunda maior cidade do universo chamado Índia, oferecendo as sacolas que a irmã, Palak, faz e é difícil acreditar que em apenas 22 minutos haja tanta poesia. Indicado ao Oscar de Melhor Curta-Metragem em Live-Action, “Anuja” furta-se à alegria de Bollywood, onipresente e artificiosa, para registrar as andanças da menina, um fantasma invisível criado pela miséria e pela indiferença.

“O Brutalista” entra com todo o merecimento na galeria de épicos do cinema, e é preciso fôlego extra para chegar ao fim dos 215 minutos de uma história cheia de reviravoltas, detalhes, proposições, beleza, mas uma beleza que repudia a obviedade e impõe-se pelo vigor. Brady Corbet e a corroteirista Mona Fastvold tecem críticas ora pertinentes, ora ingênuas ao capitalismo tendo por pano de fundo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que expulsa um homem de sua terra natal e o força a sair à procura um novo lugar para chamar de seu, pouco importa onde, sem nenhuma garantia de que o iria encontrar. Esse homem, László Tóth, vai parar, claro, nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York, e a partir então o filme ganha cores, movimento, estrutura, dançando conforme a estranha música que o compositor Daniel Blumberg cria para ele.

Robert Allen Zimmerman pode passar batido, mas Bob Dylan é uma estrela imorredoura. Abusado, folgazão, marrento, doce, sensível, humano, demasiado humano, Dylan chegou feito um meteoro à cultura pop, com a ressalva de que sua trajetória jamais soube o que é descer. Se conseguisse fazer com que velhos fãs tornassem a se apaixonar por seu ídolo, ou que novas plateias atentassem para o gênio de Dylan, “Um Completo Desconhecido” já teria cumprido um papel louvável. Entretanto, o filme de James Mangold vai muito além da mera lembrança, passa longe da hagiografia desonesta e amarra tudo numa narrativa orgânica, na qual nada é gratuito, técnica e arte amalgamam-se de modo sublime e o público viaja para um tempo em que até a guerra parecia menos ofensiva, menos degradante. É essa a sensação ao cabo dos felizes 140 minutos com que Mangold regala o espectador, com música, poesia e beleza, precisamente como tem feito Dylan há 64 anos, desde que saiu de Duluth, Minnesota, no extremo norte dos Estados Unidos, e caiu na estrada rumo a Nova York, anti-Hamlet muito senhor do seu destino. Livremente inspirado em “Dylan Goes Electric! Newport, Seeger, Dylan, and the Night That Split the Sixties” (“Dylan fica elétrico! Newport, Seeger, Dylan e a noite que dividiu os anos 1960”, em tradução literal; 2015), as reminiscências mais distantes do bardo compiladas pelo jornalista Elijah Wald, esta adaptação cinematográfica das façanhas de uma das personalidades mais instigantes de todos os tempos pega o espectador pelo contrapé.

Filhos podem ser a oportunidade perfeita para que um homem e uma mulher confirmem ao mundo que sua vontade de serem felizes para sempre pode não parecer assim tão delirante. Mas, e quando cai do azul uma imensa pedra no caminho? As agruras de um casal que se descobre mãe e pai de um filho com limitações físico-cognitiva perenes e faz desse drama que se arrasta pelo tempo uma nova motivação para batalharem juntos e renovarem seu bem-querer — sem ceder espaço a fantasias pueris — é o que de mais hipnótico pode haver no filme de Mariana Chenillo. Baseado em sua biografia homônima, publicada em 2019, o roteiro de Bárbara Anderson, escrito com Javier Peñalosa, é uma crônica atemporal que serve de alerta para os perigos do “até que a morte os separe”. Chenillo tenta responder essa pergunta com “Os Dois Hemisférios de Lucca”, uma trama escrita pela vida como ela é sobre a inesgotável capacidade de superação de problemas graves e que se perpetuam à revelia do esforço mais dedicado, desde que haja amor.

Meses depois de chegar à Polônia, o diretor sueco Magnus von Horn viveu a experiência que mudaria sua carreira. Um assalto violento e desproporcional contra ele despertou no cineasta a vontade de entender o que move seres humanos a levarem a cabo a máxima de Hobbes e atacar seu semelhante, ainda que sua sobrevivência dependa do gesto. A fictícia Karoline Nielsen é a protagonista de “A Garota da Agulha”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, mas a história verídica de Dagmar Overbye (1887-1929), a mulher que se propunha a ajudar desvalidas mães solo prometendo-lhes um lar para os filhos enjeitados e revelou-se uma das assassinas em série mais persuasivas e malévolas da sóbria crônica policial da Dinamarca, rouba a cena.

Christopher Reeve (1952-2004) precisava vencer uma forte alergia a equinos se quisesse protagonizar “Anna Karenina” (1985), a quarta versão do clássico do novelista russo Liev Tolstói (1828-1910), decerto a história de amor mais triste de todos os tempos. Levada às telas cinco vezes, entre 1935 e 2012, o caso fictício entre a protagonista, Anna Kariênina, mulher de Alieksiéi Kariênin, alto comissário do czar Alexandre 2º, com o Conde Vronsky, oficial da cavalaria, termina mal, como qualquer um sabe, mas o diretor Simon Langton já havia percebido que o carisma e a beleza de Reeve eram o bastante para atrair outros públicos, e assim um dos vilões mais abjetos da literatura universal ganhou espaço e uma cara definitiva num dos vários capítulos surpreendentes da biografia do ator, para muito além do indestrutível Homem de Aço. “Super/Man — A História de Christopher Reeve”, contudo, é um grande filme justamente por revelar quem estava por trás da fantasia. Na tarde do dia 27 de maio de 1995, Reeve cavalgava no centro equestre Commonwealth Park em Culpeper, Virgínia, quando seu cavalo refugou antes do pulo sobre uma barreira de um metro de altura. O triunfo sobre o que fora um obstáculo há uma década, transformado numa paixão, custou-lhe uma queda de cabeça, com a qual fraturou as duas primeiras vértebras cervicais e ganhou uma lesão permanente na medula espinhal.

Toda dor é verdadeira — desde que seja a nossa. Benjamin Kaplan vive um dia por vez e ao longo da hora e meia de “A Verdadeira Dor” o público tem a certeza de que ele não é tão chato assim. Numa promissora estreia como diretor e roteirista, Jesse Eisenberg diverte, emociona e arranca lágrimas e reflexões de quem assiste ao esmiuçar uma das chagas da humanidade sob o ponto de vista bastante íntimo e revelador de dois primos, personalidades opostas que se complementam. Apesar da pletora de cenas tragicômicas, dominadas com técnica e intuição por Kieran Culkin, Eisenberg tem, na virada do segundo para o terceiro ato, um grande momento, ao fazer uma revelação sobre o extático Benji. Culkin venceu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante 2025 por Benji Kaplan, e Jesse Eisenberg foi indicado ao prêmio de Melhor Roteiro Original, mas perdeu para Sean S. Baker, por “Anora” (2024), dirigido pelo próprio Baker, mais um dos grandes absurdos patrocinados pelos velhinhos da Academia.