A dinâmica entre vítimas e algozes permeia a trajetória humana com uma brutalidade quase inescapável, como se o ímpeto bélico estivesse codificado em nossa essência mais primitiva. A realidade, no entanto, é que muitos daqueles que se proclamam guerreiros são apenas fascinados pela ilusão de poder que o conflito proporciona, ignorando solenemente qualquer ideal superior de honra, tradição ou dignidade coletiva. A guerra, que deveria ser a última instância para a resolução de dilemas, transforma-se em espetáculo de dominação, em que o cheiro de pólvora parece conferir um falso sentimento de transcendência. O diálogo, embora capaz de aplacar rivalidades e evitar desastres provocados por mal-entendidos insignificantes, é prontamente descartado em favor da violência, que sacia uma necessidade visceral de afirmação. Talvez seja justamente a incapacidade de lidar com os mistérios da existência que impulsione o homem a buscar sentido na destruição, tropeçando nas mesmas falhas ao longo da história, como se a lógica da perdição fosse inevitavelmente atraente.
O paradoxo da vida reside no fato de que cada trajetória é digna de narrativa, embora raramente nos permitamos olhar para o outro sem preconceitos ou julgamentos. Reconhecer nossas fragilidades sem transformá-las em estandartes de fracasso exige coragem genuína, pois é a partir dessa consciência que se constrói alguma forma de dignidade. O thriller “A Caçada” (2020), dirigido por Craig Zobel, explora com destemor essa dualidade moral, em que a visão dos “de cima” sobre os que vivem à margem revela um grotesco manifesto de poder. O diretor mergulha nos abismos do espírito humano, expondo o arsenal de preconceitos que sustentam a guerra simbólica e concreta entre classes e ideologias. Armamento civil, racismo, intolerância política e o abismo econômico formam um mosaico de brutalidade onde o desejo de controle sobre o outro assume a forma mais impiedosa.
O filme não economiza em ironia ao introduzir Richard (Glenn Howerton), um multimilionário que humilha a aeromoça Liberty (Teri Wyble) com a sutileza dos que se acreditam superiores. A cena do caviar osseta simboliza o abismo social que separa os personagens: enquanto Richard recusa a iguaria por tédio, Liberty admite jamais ter experimentado o que serve. A narrativa, com sua precisão cirúrgica, utiliza esses detalhes para tecer um quadro de desumanização, em que a hierarquia se afirma pela humilhação cotidiana. A fotografia de Darran Tiernan contribui para o peso dramático, equilibrando luminosidade e sombras de maneira a refletir a tensão crescente, enquanto a sequência final, protagonizada por Liberty, encontra na vingança sua expressão máxima de justiça, subvertendo as expectativas com uma resolução ao mesmo tempo crua e poética.
No núcleo da trama, Betty Gilpin transforma sua Crystal Creasey em um ícone de resistência bruta e visceral. Contraposta à figura de Emma Roberts, que parece deslocada naquele campo aberto de violência iminente, Crystal revela a sagacidade de quem reconhece a própria vulnerabilidade, mas não a aceita passivamente. A estética da brutalidade, conduzida por Zobel, é intencionalmente desconfortável, desafiando o espectador a refletir sobre os limites da empatia e o valor atribuído às vidas descartáveis. O roteiro conduz o espectador a um labirinto moral onde as motivações dos caçadores e caçados se embaralham, sugerindo que a verdadeira crueldade não está apenas na força bruta, mas no desprezo disfarçado de superioridade moral.
Por fim, Crystal emerge como um arquétipo contemporâneo da sobrevivência, esvaziando o discurso politizado com uma postura pragmática que se recusa a se vitimizar. Sua busca não é por justiça coletiva, mas pela preservação pessoal, uma antítese aos discursos de emancipação coletiva que, frequentemente, mascaram novas formas de dominação. Zobel, ao optar por essa construção, escancara o incômodo de enfrentar uma figura feminina que não se enquadra nos padrões de heroísmo socialmente aceitos. Em última análise, o filme desafia a noção de justiça como um ideal abstrato, apresentando-a como uma conquista individual, nascida da necessidade visceral de sobreviver quando o mundo ao redor se torna campo de batalha.
★★★★★★★★★★