O livro mais misterioso da literatura brasileira — e que virou refúgio secreto de quem pensa demais

O livro mais misterioso da literatura brasileira — e que virou refúgio secreto de quem pensa demais

Clarice Lispector (1920-1977) foi um espírito dos mais invulgarmente caudalosos no corpo de uma mulher comum. As caminhadas da escritora pela orla do Leme de um Rio de Janeiro já sepulto nesse imenso cadáver que não para de procriar chamado Brasil tiveram sua grande medida de responsabilidade nas iluminações tenebrosas com que Clarice, essa alma essencialmente sombria, mas que gostava de sol, terminava de arrasar com as tantas suscetibilidades hipócritas da gente sabida de seu tempo. Publicado em dezembro de 1943, dezesseis anos antes da ida de Clarice para a Zona Sul carioca — para onde fora levada quando decidira se separar do marido —, “Perto do Coração Selvagem” escrutina as primeiras descobertas de Joana, muitas, claro, afeitas à paixão e ao sentimento amoroso mais elaborado, e à medida que o livro se agiganta e Joana torna-se mulher, o leitor percebe quão ingênua, quiçá tola, era a protagonista. Em seu romance inaugural, Clarice já demonstrava a incontrolável vontade de rever a condição feminina a partir de pontos de vista que deveriam ser óbvios, mas provam-se reveladores, empenhados num mergulho corajoso na dialética das emoções humanas.

Perto do coração selvagem
Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector (Rocco, 208 páginas)

Nos dezenove capítulos de “Perto do Coração Selvagem”, Clarice faz um passeio pela infância e juventude de Joana, na primeira parte, chegando a sua rotina de casada, no segundo tomo. A autora vale-se de fragmentos de memória e consciência de sua personagem central, alguém desde tenra idade inconformado com a brevidade do existir, sua finitude, açulado por suas questões sem resposta, tudo isso em monólogos interiores que têm mais valor que a realidade da vida como ela é. Esse fluxo de consciência toca a James Joyce (1882-1941) e Virginia Woolf (1882-1941), e não por acaso.  Em “Um Quarto Só Seu” (1929), Woolf lançou as bases do feminismo moderno, recorrendo à metáfora mais direta para sustentar que mães de família bem-casadas não deveriam resignar-se com suas casas suntuosas, se não tinham um espacinho onde pudessem recolher-se de quando em quando. “Perto do Coração Selvagem” está para Clarice como “Mrs. Dalloway” (1925) está para Woolf, histórias de mulheres que teriam tudo para não reclamar de nada, mas precisam desesperadamente de uma confirmação qualquer de que viver é mais que só organizar animados convescotes. Como disse a seu respeito Antonio Candido (1918-2017), Clarice estava apenas florescendo em sua primeira experiência literária, “já uma nobre realização”. Mas, como Joana, Clarice queria — e podia — mais.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.