“O Jogador” (1866) é uma história sobre amores efêmeros e pequenas vinganças. Dostoiévski conheceu de muito perto o inferno de ter se tornado presa da jogatina, e neste suspense psicológico de sua fase intermediária tenta conduzir o leitor pelo dédalo de emoções contraditórias que o assaltaram durante uma viagem à Europa Ocidental. Para evitar problema com a lei, situa seus personagens na cidade fictícia alemã de Roletemburgo, trocadilho óbvio para designar um lugar corrompido pelo tilintar das fichas e pelo sobe e desce do baralho, expediente que faz a desgraça de todos eles.
Aleksei Ivânovitch, o narrador, é o preceptor de uma família depauperada que chega a Roletemburgo em circunstâncias um tanto patéticas. Um certo General torce pela morte da tia, que chama de avó, Antonida Vassilievna, esperando que ela passe-lhe a herança. Para manter-se enquanto não põe a mão na bolada, dispõe de um fiador, Des Grieux, um duque francês que paga suas despesas, ensejando, claro, ser generosamente recompensado. Acabam por também entrar na conta Astley, um lorde inglês; madame Blanche e sua filha, com quem o General deseja casar-se; e Polina Aleksándrovna e seus irmãos, enteados do possível herdeiro de Antonida Vassilievna, discípulos de Aleksei.

O livro encampa o paradoxo entre a vida como ela se apresenta e a vida como ela deveria ser. À medida que o homem conquista coisas, mais coisas anseia por conquistar. Colateralmente, “O Jogador” menciona a importância de valores que o dinheiro não compra, e mais uma vez Dostoiévski aproxima-se a Paulo de Tarso, que precisou cair do cavalo a caminho de Damasco, na Síria, e ficar cego por algum tempo, a fim de saber que precisava de Deus. “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, o ensinamento máximo do apóstolo, parece ter sido o lema de vida de Dostoiévski, em especial após os acontecimentos trágicos e dramáticos, que teimavam em suceder-lhe. Ter se transformado num apostador compulsivo não chegou a causar em Dostoiévski mais que humilhação e opróbrios de toda sorte, mas foi fundamental para que entendesse, 160 anos antes da febre maldita das bets, o poder autodestrutivo dos jogos de azar. Humanista que é, Dostoiévski, contudo, não nos deixa soçobrar no oceano revolto do julgamento. A esperança é uma vã quimera para Dostoiévski, mas não se vive sem ela. Ninguém pode esperar da vida coisa alguma, muito menos conhecer o mistério por trás de cada coisa. Dostoiévski brinca com esses dois conceitos, quais sejam, a avidez humana por sabedoria e o quão deslocado o homem está num mundo que, na verdade, não conhece — nem vai conhecer jamais. Nunca se sabe com qual dos dois quer nos atacar.
Tudo parece encaminhar-se sem maiores sobressaltos, até que a quase moribunda Antonida Vassilievna aparece de surpresa em Roletemburgo, e com um propósito bombástico. Ela acusa o General de trocar mensagens com informantes russos e diz que não dar-lhe-á um vintém de sua fortuna quando morrer. Mediante um artifício tão modesto e sofisticado a um só tempo, Dostoiévski começa a movimentar a trama e levá-la para onde queria desde sempre. Polina torna-se o cordeiro a ser dado em sacrifício em nome do padrasto, tentando garantir no pano verde o dinheiro que possa servir de entrada para cobrir o débito do General com Des Grieux.
Apaixonado pela moça, Aleksei, jogador tarimbado, se oferece para auxiliá-la e, num lance que só mesmos os enamorados cegos podem compreender, prova sua lealdade a Polina e é despedido. O homem, agarrado que está a uma pálida ideia de certeza, vocifera, tentando a todo custo defender seus frouxos argumentos a respeito de qualquer asnice. Aleksei encarna todo o gênero humano que, sem admitir levar uma rasteira da vida como ela é, continua no encalço de ambições tacanhas, o que lhe provoca ainda mais sofrimento. As pessoas ao seu redor vão à lona, inclusive Antonida Vassilievna, que também vira uma jogadora inveterada, gasta até o último níquel e tem de voltar correndo para Moscou, fugindo dos polacos, achacadores profissionais para o autor. É escusado dizer que o General não consegue nada com mademoiselle Blanche, e enlouquece.
Como quem não quer nada, Dostoiévski desce ao inferno de uma alma vulnerável, que guarda o resto de dignidade com o qual espera contar para restabelecer-se. Entre uma e outra partida, Aleksei pensa no amor de Polina Aleksándrovna (que jamais tivera), e, mais importante, no porquê de ter desejado conhecer essa perigosa maneira de lidar com seus desapontamentos e limitações, o arremate perfeito para mencionar o poder do livre-arbítrio. Somente conhecendo-se a si mesmo, sem muletas como o jogo, o homem é capaz de conhecer também a sociedade em que está inserido, identificar que condutas tomar ou não e decidir entre escapar da irrelevância ou se tornar um pária. A duras penas, Aleksei Ivânovitch aprende a lição.