Todo escritor fala de si mesmo, em maior ou menor grau, seja lá a que contexto esteja se referindo a narrativa. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) argumenta que toda obra de ficção é autobiográfica, e em Dostoiévski isso não é diferente, muito pelo contrário. Dostoiévski foi um homem dado a paixões e cheio de ímpetos. O hábito de ler em voz alta textos de teor niilista, materialista e de natureza iconoclasta em geral acabou por traí-lo. Em 23 de abril de 1849, ele foi encarcerado e posteriormente conduzido à fortaleza de São Pedro e São Paulo.
No fim do ano, recebeu a pena capital por fuzilamento; só teve a punição anulada na undécima hora por um ato de indulgência do czar, mas foi condenado a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria. Providência divina? Teria sido melhor ter sucumbido ao pelotão de artilharia de Nicolau 1º (1796-1855) do que se aceitar a generosidade de um tirano, condenação ainda assim — quiçá pior que a morte —? A única vantagem do isolamento siberiano para Dostoiévski foi ter tido a quietude necessária para aprofundar seu contato com Platão (428 a.C.-347 a.C.), Santo Agostinho (354-430), Shakespeare (1564-1616), entre outros grandes como ele, arriscando-se a um castigo qualquer, porque não se podia ler na prisão. Foi aí que começou a nascer “Os Irmãos Karamázov” (1879).

Bóris Schnaiderman (1917-2016), tradutor de Dostoiévski para o português, inteligentemente lembra num dos tantos prefácios que assinou que “os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de uma obra”. E é a mais aterradora verdade, haja vista a identificação do enredo e seus personagens com este insano século 21, um período de inconstância, quebra do estabelecido, imposição das incertezas, do avanço das ideologias marxistas, de um lado, e do imperialismo e liberalismo econômico, do outro. Dostoiévski era mesmo um gênio, um homem muito à frente do tempo em que viveu. “Os Irmãos Karamázov” condensa o pensamento e a verve dostoievskianos num livro monumental.
Em edições que variam de quinhentas a mil páginas, o último romance de Dostoiévski versa sobre os eternos dilemas existenciais, frisando a degradação moral que a religião quase nunca corrige. Dmítri, Ivan e Aliócha, os personagens-título, simbolizam um temperamento que todo ser humano têm em maior ou menor grau. Filhos do devasso Fiódor Pávlovitch Karamázov, o libertino Dmítri, o niilista Ivan e o nobre Aliocha batem-se, cada qual a sua maneira, à cata de sentido e de força para vencer o pecado, a dúvida, o tédio, a vontade inelutável de desistir e de permanecer no erro. O gênio indomável de Dostoiévski nunca apresenta tipos acabados, definitivos; antes chama o leitor a descobri-los consigo, sempre procurando valorizar os anti-heróis, ainda que guarde certo distanciamento da contenda.
A reclusão numa cela certamente teve também o condão de reforçar no autor a crença na falta de sentido da condição humana, que ao homem só resta, como Sísifo, empurrar uma pedra até o alto de uma montanha só para, ao fim do esforço, vê-la rolar outra vez, fiando-se no princípio cristão da transformação pelo sofrimento e, tendo muito claro que negar a esperança não é uma opção. A vida não faz o menor sentido e apenas nós mesmos podemos dar algum senso de razoabilidade à vida, sendo cada um responsável por identificar do que sua própria existência carece. Por sua vez, a falta de esperança, à luz do cristianismo, é o maior pecado que o homem pode cometer, para o qual não há hipótese de absolvição.
Poder-se-ia dizer que Dostoiévski é uma amálgama de seu trio de protagonistas, alguém sequioso por conhecer, impulsivo, sobretudo quando jovem, mas um intelectual brilhante, perseguido por suas dúvidas mais idiossincrásicas, e também um sujeito que não deixa de buscar na religião — por mais inútil que a considere muitas vezes — respostas para suas agonias e um caminho para a cura do espírito e do corpo, sempre em apuros. Na virada do primeiro para o segundo ato, o julgamento de um dos irmãos, acusado de um parricídio, aquece a narrativa desse romance de desconstrução, um golpe certeiro de Dostoiévski. O equilíbrio entre rigor intelectual e entretenimento é, sem dúvida, a marca mais notável de “Os Irmãos Karamázov”.