A série de ficção e fantasia que você vai querer maratonar para fugir da realidade — na Netflix Sundance Now / Shudder / Bad Wolf

A série de ficção e fantasia que você vai querer maratonar para fugir da realidade — na Netflix

No silêncio de uma biblioteca secular, onde o pó repousa sobre séculos de saberes interditos, uma mulher toca um livro e abre, sem saber, um antigo campo de batalha. Essa premissa, poderosa em sua simplicidade, sustenta o início de “A Descoberta das Bruxas”, série que, ao menos em seu ponto de partida, ensaia um equilíbrio instigante entre erudição, mistério e tensão sobrenatural. Diana Bishop, acadêmica e bruxa relutante, é lançada a um universo subterrâneo onde alquimia, política interespécies e um volume perdido — o manuscrito Ashmole 782 — funcionam como chaves de um enigma que ultrapassa gerações. O ritmo é urgente, mas controlado; a atmosfera, carregada de simbolismos. Tudo indica que se está diante de algo maior do que apenas uma saga sobrenatural. O problema é que essa promessa inicial, embora sedutora, cede lugar a um percurso menos rigoroso e mais moldado pelas exigências do apelo romântico e do consumo serializado.

A primeira temporada constrói com cuidado os elementos de seu suspense arcano. Há uma contenção narrativa que amplifica o mistério: cada personagem parece guardar mais do que revela, e a ambientação — entre Oxford e Veneza — é explorada com o olhar de quem compreende que o cenário pode ser tão eloquente quanto o diálogo. Nesse contexto, a figura de Diana opera como catalisadora de forças latentes: ela é simultaneamente ameaça e solução, isca e predadora. Ao redor dela, personagens como Peter Knox e Satu orbitam com intenções veladas, compondo um tabuleiro que parece prestes a ruir a cada movimento. A tensão é bem dosada e os conflitos se desenrolam com um senso de urgência que envolve o espectador, sem recorrer a atalhos óbvios.

Essa densidade, no entanto, sofre um deslocamento perceptível a partir da segunda temporada. A narrativa, antes sustentada por enigmas e estratégias subterrâneas, passa a gravitar em torno do vínculo entre Diana e Matthew, o vampiro ancestral marcado por um passado violento e dilemas morais mal resolvidos. Em vez de complexificar os riscos desse relacionamento — como a série chegou a sugerir em seus primeiros episódios —, a trama opta por investir em um romantismo quase devocional, que, embora emotivo, reduz o conflito ao campo da paixão. A repetição de gestos amorosos e o tom consternado que permeia suas interações acabam por substituir a inquietação intelectual do início por uma sequência de declarações intensas, mas pouco transformadoras.

Há também um problema estrutural mais profundo: a trajetória de Diana sofre um salto abrupto entre o desconhecimento e o domínio. De pesquisadora cética e desorientada, ela se transforma em figura central de poder e articulação política com uma desenvoltura que contraria a lógica interna da própria série. Em poucos episódios, assume múltiplos papéis — bruxa potente, esposa exemplar, líder diplomática — sem que o roteiro se detenha em seus dilemas, erros ou renúncias. A ausência de tropeços reais ou perdas duradouras enfraquece o arco de amadurecimento da protagonista, que parece atravessar as provações sem jamais ser verdadeiramente ferida por elas.

Esse esvaziamento dramático se evidencia ainda mais na comparação com os livros de Deborah Harkness, cuja trilogia original trabalha com mais paciência as nuances de crescimento, ambiguidade e sofrimento. A adaptação televisiva, ao priorizar agilidade e apelo visual, sacrifica parte da densidade moral e afetiva da história. Muitas das contradições que tensionam os personagens nas páginas — o medo de corromper-se, a incerteza quanto ao uso do poder, a perda de entes queridos — são apenas tocadas de maneira lateral na série. A decisão de suavizar essas camadas parece responder menos a uma opção estética do que a um receio de afastar o público com narrativas mais sombrias ou moralmente ambíguas.

A inserção da Inglaterra elisabetana na segunda temporada, ainda que exuberante em termos de cenografia, funciona mais como vitrine de época do que como ambiente hostil. A presença de figuras históricas como Elizabeth I e Philippe de Clermont desperta expectativa, mas a série tende a neutralizar rapidamente seus potenciais antagonismos. Em vez de ampliar o campo de tensão política e existencial, essas interações reforçam o protagonismo infalível de Diana, cuja ascensão se dá sem antagonistas à altura. O que era para ser um mergulho perigoso no passado torna-se, por vezes, um desfile de conquistas e encantamentos — belamente encenado, mas previsível em seus desdobramentos.

Ainda assim, nem tudo se dissolve sob o peso do romantismo excessivo. O elenco de apoio, em especial os intérpretes de figuras ambíguas como Kit Marlowe, Satu e Gerbert, sustenta momentos de verdadeira tensão. Há cenas em que o jogo político volta a respirar, em que alianças frágeis e ameaças veladas retomam o espírito da temporada inicial. A fotografia, cuidadosa e atmosférica, reforça essa ambiguidade: luzes filtradas por vitrais, corredores labirínticos, silêncios carregados — tudo conspira para lembrar que, mesmo suavizada, a série ainda guarda resquícios de seu potencial original. É nesses interstícios que “A Descoberta das Bruxas” reencontra, ainda que brevemente, a inquietação que a tornou atraente.

Para quem não leu os livros, a experiência pode ser envolvente o suficiente: o romance entre os protagonistas tem química, o universo proposto é visualmente rico, e o ritmo, mesmo irregular, mantém a atenção. No entanto, para espectadores mais exigentes — ou leitores da trilogia —, a série deixa uma sensação de promessa não plenamente cumprida. O material de base tem profundidade para além do encantamento estético, e essa camada raramente é explorada com a intensidade que merece. Há momentos em que se intui um abismo emocional ou um dilema ético à espreita, mas a narrativa recua antes de arriscar.

“A Descoberta das Bruxas” não é um fracasso, mas uma série que escolheu a segurança em detrimento da ousadia. Seu universo permanece intrigante, sua estética continua arrebatadora, e o elenco é competente. Mas a distância entre o que se esboça e o que se realiza — entre a promessa e o mergulho — define o tom agridoce que a acompanha. É uma história que toca a magia, mas teme as consequências do feitiço.

Filme: A Descoberta das Bruxas
Diretor: Farren Blackburn
Ano: 2022
Gênero: Drama/Fantasia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★