Durante décadas, ser mulher significava viver sob o tacão de um sistema que não apenas cerceava, mas coreografava seus passos. Existia um roteiro não escrito, imposto por uma cadeia hierárquica que começava dentro de casa e se estendia para além das cercas da propriedade familiar. De pai para marido, passando por mestres e vizinhos, a autoridade masculina traçava o itinerário da existência feminina, submetendo até mesmo os desejos mais íntimos à aprovação de outrem. Liberdade, nesse cenário, era um conceito tão longínquo quanto impensável — e, quando ousado, custava caro.
É justamente sobre essa ousadia e seu preço que gira a narrativa adaptada por Olivia Newman em “Um Lugar Bem Longe Daqui”, baseada no romance de Delia Owens. O que se vê, porém, vai além do lamento de uma alma ferida. Trata-se de uma anatomia emocional em camadas, cujos contornos se formam na solidão profunda de uma jovem que, apartada do mundo, encontra forças para resistir. O pântano onde vive, paradoxalmente, funciona tanto como prisão quanto abrigo — um espaço que reflete o paradoxo da reclusão libertadora.
A história de Kya, nome encurtado de Catherine Danielle Clark, se desenrola em três tempos distintos, todos marcados por rupturas e feridas abertas. Desde a infância sob o domínio de um pai violento até os enganos amorosos na juventude, sua trajetória é marcada por abusos, silêncios e uma necessidade visceral de se manter inteira. A adaptação de Newman, co-roteirizada com Lucy Alibar, herda da experiência anterior da roteirista em “Indomável Sonhadora” a habilidade de construir protagonistas femininas intensamente conectadas ao instinto de sobrevivência — e essa herança se faz notar, não como repetição, mas como expansão sensível de um mesmo grito calado.
Há, na estética do filme, uma melancolia impregnada nas texturas: as folhagens densas, o calor úmido, os ruídos persistentes das cigarras e a luz mortiça do entardecer compõem um ambiente que não serve apenas como cenário, mas como extensão do espírito de Kya. O cadáver descoberto por dois meninos no pântano, nos primeiros minutos do filme, aciona uma engrenagem narrativa que lembra “Conta Comigo”, de Rob Reiner, mas com implicações mais densas. O corpo é o de Chase Andrews — figura arrogante e predadora —, e as suspeitas rapidamente se voltam para a reclusa Menina do Brejo.
A investigação conduzida pelo xerife Jackson e seu ajudante, comedida e enviesada pela moralidade provinciana, funciona como pano de fundo para que a diretora desvele, em um longo mergulho retrospectivo, os escombros afetivos deixados na infância de sua protagonista. Garret Dillahunt, como o pai, dá corpo a um espectro de brutalidade doméstica que justifica a evasão da família, restando apenas Kya, interpretada com uma inquietude terna por Jojo Regina em sua fase mais tenra.
A partir de então, acompanhamos uma jovem que tenta, a seu modo, domesticar o abandono. Quando reencontramos Kya já adulta, na pele contida de Daisy Edgar-Jones, a narrativa desloca-se para o tribunal, onde a acusação de assassinato torna-se símbolo de décadas de preconceito acumulado. A atuação de David Strathairn como o advogado Tom Milton traz um contrapeso humanizado ao julgamento que mais se assemelha a um linchamento moral velado.
Harris Dickinson, no papel de Chase, encarna com precisão a figura sedutora e ameaçadora do algoz disfarçado. Sua presença pontual, mas incisiva, contribui para o suspense que permeia a dúvida: houve assassinato, acidente ou suicídio? Olivia Newman dosa bem essa ambiguidade, evitando conclusões apressadas e trabalhando com a sugestão como instrumento narrativo.
O filme opera uma curva inesperada. Em vez de fechar-se em um veredito redentor, opta por um fim que conserva suas fendas. A imagem de Kya envelhecida ao lado de Tate Walker não é mero epílogo romântico — é a síntese possível de uma vida tensionada entre o isolamento e a necessidade de afeto. Ainda que a redenção pareça alcançada, fica a impressão de que certas feridas só se tornam invisíveis porque aprendemos a carregá-las de forma mais silenciosa.
★★★★★★★★★★