O livro visceral que chocou o mundo há 139 anos — e ainda pode mudar a sua forma de viver

O livro visceral que chocou o mundo há 139 anos — e ainda pode mudar a sua forma de viver

“A Morte de Ivan Ilitch”, de Liev Tolstói, figura entre os mais implacáveis exercícios literários já empreendidos contra a ficção social da dignidade. O romance, publicado em 1886, não apenas encena a deterioração física de um funcionário público moribundo, mas converte essa agonia em teatro filosófico, revelando com brutal clareza o abismo entre a aparência civilizada da existência e sua vacuidade ontológica. Ao narrar o declínio de um juiz que viveu conforme as expectativas sociais e morre sufocado por elas, Tolstói realiza um gesto estético que ultrapassa a moldura do realismo russo do século 19 e adentra o território atemporal daquilo que se poderia chamar de metafísica da mediocridade.

Situado em uma Rússia pré-revolucionária ainda dividida entre o lastro das estruturas aristocráticas e a ascensão da classe funcionária, o romance articula, em sua brevidade, uma crítica devastadora ao ideal burguês da respeitabilidade. Ivan Ilitch é o arquétipo do homem funcional: aplicou-se aos estudos, fez carreira no judiciário, casou-se com uma mulher “conveniente”, buscou conforto material e prestígio social. Nada lhe faltou — exceto a vida. A narrativa de sua morte, portanto, é também a história da revelação dessa ausência: quanto mais seu corpo cede à doença, mais se desnuda a falsidade de seus vínculos, a superficialidade de suas alegrias e a esterilidade de seu percurso.

A Morte de Ivan Ilitch
A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói (Antofágica, 312 páginas, tradução de Lucas Simone)

A estratégia narrativa escolhida por Tolstói amplifica a dimensão trágica do enredo ao inverter as expectativas temporais do leitor: o romance não começa com a doença de Ivan, mas com sua morte. O fato consumado não apenas desativa o suspense, mas instala uma sensação de frieza burocrática. A reunião de colegas para discutir quem ocupará sua vaga e os comentários socialmente codificados sobre seu falecimento introduzem um tom de indiferença institucional que acompanha toda a obra. A morte, enquanto fenômeno radical, é rebaixada a incidente administrativo — e essa dessacralização não se apresenta como anomalia, mas como norma.

Tolstói articula, com maestria, um narrador que mantém distância crítica dos personagens, expondo-os em sua superficialidade sem caricatura, em sua ignorância sem escândalo. Essa impessoalidade, muitas vezes interpretada como crueldade estilística, é precisamente o motor estético da obra: ao reter a empatia sentimental, o romance força o leitor a confrontar o horror da morte não como espetáculo, mas como desnudamento. Ivan Ilitch não é um mártir, tampouco um vilão; é apenas um homem comum que viveu segundo os códigos que o cercavam — e que, ao morrer, descobre que esses códigos não têm qualquer valor diante da realidade da finitude.

Essa descoberta, no entanto, não é súbita. Ao longo do romance, o protagonista transita por estágios de negação, angústia e raiva, encarnando com inquietante precisão a anatomia do medo. Sua doença, jamais nomeada com exatidão, funciona como metáfora de um mal mais profundo: a recusa em admitir que a vida vivida segundo padrões externos é, em essência, uma forma de morte antecipada. O médico que o examina, o advogado que o substitui, a esposa que reclama de seus gemidos — todos orbitam ao redor de Ivan como se a sua dor fosse um erro de etiqueta. Nesse universo de aparências, a sinceridade é deslocada para as margens — e é precisamente nas margens que emerge a única figura íntegra da narrativa: Gerasim.

O jovem criado, que cuida de Ivan com paciência, humildade e compaixão genuína, representa a presença silenciosa da autenticidade em meio à encenação social. Ao contrário dos demais personagens, Gerasim não disfarça a realidade da morte nem busca domesticar o sofrimento. Ele acolhe, serve, sustenta. Sua figura não é idealizada, mas opera como contraponto moral: em sua simplicidade, reside a verdade que Ivan passou a vida ignorando. A presença de Gerasim insinua uma forma de vida anterior aos artifícios sociais, fundada não em prestígio, mas em vínculo humano.

À medida que a morte se aproxima, Ivan Ilitch experimenta uma lenta e devastadora lucidez. O colapso do corpo não é apenas físico, mas simbólico: o mundo ao seu redor — aquele das convenções, das formalidades, das cortinas novas e dos jantares em família — revela-se como um simulacro. A epifania final não oferece consolo religioso fácil nem redenção grandiosa. O que há, no limite, é o abandono da mentira. A frase “isso não é vida” ecoa como veredito e testamento. A morte, então, não se configura apenas como fim inevitável, mas como crítica radical à vida que se pretendeu correta e útil — e que se revelou, no fim, vazia e cínica.

O romance, nesse sentido, se afasta de uma pedagogia da morte e se aproxima de uma ética do real: não ensina a morrer, mas obriga a reconhecer que o medo da morte nasce do fracasso em viver com verdade. A dor de Ivan Ilitch não advém apenas da enfermidade, mas do confronto com a insignificância de sua existência inteira — uma existência que ele acreditava significativa justamente porque era socialmente validada. Ao perceber que o mundo que o moldou é incapaz de acompanhá-lo até o limiar final, Ivan experimenta a falência de tudo aquilo que o definiu. O terror não é morrer, mas descobrir que se viveu para nada.

Essa experiência radical, no entanto, não se encerra no desespero. A súbita serenidade que antecede sua morte não é triunfo espiritual nem reconciliação metafísica. É, antes, um raro instante de despojamento: ao abandonar toda resistência, Ivan deixa de existir como função social e passa a existir como presença interior. Sua última sensação, marcada por uma espécie de leveza paradoxal, não é de alívio, mas de cessação da falsidade. Nesse instante, ele não vence a morte — mas finalmente deixa de ser vencido pela vida que o subjugou.

“A Morte de Ivan Ilitch” permanece, assim, como um dos mais profundos retratos literários do conflito entre verdade e aparência. Seu impacto decorre não de grandes acontecimentos, mas da minúcia com que revela o horror contido no ordinário, a tragédia latente na normalidade, o vazio existencial sob o verniz da civilidade. Em tempos marcados pela medicalização do sofrimento, pela estetização da produtividade e pela recusa da finitude, o romance se torna ainda mais atual. Ele não propõe respostas, mas formula com clareza desarmante a única pergunta que importa: “E se tudo isso for uma mentira?”

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.