Para inteligentes: o terror indicado a 214 prêmios, que levou o Oscar e é um dos filmes mais perturbadores da história, na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Para inteligentes: o terror indicado a 214 prêmios, que levou o Oscar e é um dos filmes mais perturbadores da história, na Netflix

O que se revela mais insensato do que viver em um turbilhão de escolhas destrutivas é a expectativa de que aqueles que veem o mundo como um jogo sem limites ajam com alguma moderação. A vida, para cada um de nós, é uma intricada teia de desafios e questões pessoais, cujo significado só se desvenda após um árduo processo de amadurecimento. Atingir esse entendimento pode parecer quase mágico, uma rara clareza que nos invade de forma inesperada, e que frequentemente nos afasta dos olhares indiscretos dos que nos desprezam e da perplexidade daqueles que nos desejam bem.

Nesse contexto, “Corra!” mergulha o público em uma trama perturbadora e ao mesmo tempo sedutora, exigindo uma atenção constante e uma percepção aguçada. Jordan Peele constrói sua narrativa em torno do ressurgimento feroz das tensões raciais, abordando um tema urgente que encontra eco em sua própria experiência, transformando o filme em uma peça indispensável de reflexão crítica.

O filme se destacou no Festival de Sundance de 2017, onde fez sua estreia para um seleto grupo de espectadores, deixando claro desde o início que Peele não pouparia seu público de desconforto. A aparente simplicidade de uma viagem de um casal — Rose e Chris, juntos há cinco meses — à casa dos pais dela, rapidamente se transforma em uma trama carregada de ansiedade e desconfiança.

A primeira cena do filme já dá o tom: Andre, interpretado por Lakeith Stanfield, caminha tranquilamente por uma rua arborizada, até ser seguido de perto por um carro, em uma cena que antecipa o clima de perseguição e tensão que virá a seguir. Qualquer dúvida sobre o que Peele quer expressar se dissipa quando a história muda o foco para Chris e Rose, interpretados de forma impecável por Daniel Kaluuya e Allison Williams, enquanto preparam-se para a viagem. A breve conversa entre os dois já sugere a apreensão de Chris sobre o provável desconforto racial que enfrentará ao conhecer os pais de Rose.

A paranoia de Chris, inicialmente sutil, vai crescendo à medida que ele se depara com situações que reforçam suas suspeitas, e Peele conduz essa escalada com precisão, tanto nos diálogos quanto na fotografia de Toby Oliver, que usa tons densos como azul escuro e verde musgo para sublinhar a tensão crescente.

O ápice do filme traz elementos que ampliam ainda mais o horror: hipnose, controle mental e até transplantes cerebrais, além de uma referência sombria ao assassino em série Jeffrey Dahmer, que ganha uma pitada de humor na fala do personagem Rod, vivido por LilRel Howery, que oferece alívio cômico em momentos estratégicos. No entanto, por mais grotescas que sejam as ações dos vilões, “Corra!” se mantém ancorado em uma crítica social implacável, expondo como o racismo, sob uma superfície aparentemente polida e civilizada, continua a alimentar as mais perigosas intenções.

Peele conduz essa narrativa com maestria, mantendo o espectador desconfortável, mas engajado, enquanto questiona como as desigualdades raciais permanecem entranhadas em várias camadas da sociedade. “Corra!” não é apenas um thriller psicológico ou um filme de terror — é uma denúncia contra as armadilhas sutis e não tão sutis do racismo contemporâneo, que frequentemente se disfarça de boas intenções.

Assim, Peele nos obriga a encarar verdades desconfortáveis e a refletir sobre como a opressão racial, embora possa ter mudado de forma, ainda persiste como uma sombra constante no tecido social. O filme é um lembrete poderoso de que, mesmo em um mundo que se autoproclama pós-racial, as velhas feridas continuam abertas, e a luta por igualdade ainda está longe de terminar.


Filme: Corra!
Direção: Jordan Peele
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10