Filme no Prime Video destrincha vida e carreira de um dos maiores atores das últimas quatro décadas Divulgação / Amazon Prime Video

Filme no Prime Video destrincha vida e carreira de um dos maiores atores das últimas quatro décadas

Do estrelato ao ostracismo, passando por morte, doença, rejeição, paternidade: há de tudo um pouco em “Val”, a biografia de uma das promessas que Hollywood conseguiu realizar e das quais teve de abrir mão sem muito tempo para despedidas. Val Edward Kilmer, o protagonista do tocante documentário de Ting Poo e Leo Scott, deixa-se capturar em situações que inspiram pena, mas sabe muito bem como tirar proveito dessa estratégia para levar quem assiste a revisitar momentos áureos de seus quarenta anos de carreira, interrompidos em 2015, pelo câncer de garganta que arruinou-lhe a voz.

Os diretores citam boa parte dos filmes em que Kilmer e seus tipos milimetricamente pensados tornavam-se sensação quase instantânea, como se deu com o Cavaleiro das Trevas especialmente atormentado de “Batman Eternamente” (1995), dirigido por Joel Schumacher (1939-2020), ou o Tom Kazanski de “Top Gun – Ases Indomáveis” (1986), em que rivaliza com Pete “Maverick” Mitchell, o mocinho de Tom Cruise, até depois de morto — para não falar de “Top Secret! – Superconfidencial” (1984), a paródia que veio antes do sucesso levado à tela por Tony Scott (1944-2012), a cargo de David e Jerry Zucker e Jim Abrahams.

Quase abafado, surge também “A Ilha do Dr. Moreau” (1996), de John Frankenheimer (1930-2002), cujos bastidores guardam momentos nada, nada edificantes para a memória do ator, como quando apagou um cigarro no rosto de um assistente de câmera, episódio de que Scott e Poo não tratam. Segredos de polichinelo de uma estrela cadente.

Jack, o primogênito, presta-se a alter ego do pai, narrando dramas de família a exemplo da tragédia com o irmão Wesley (1962-1977), morto por afogamento najacuzzi da família, aos quinze anos, ou o desempenho de Kilmer durante seus anos na Julliard School, uma das mais prestigiadas escolas de teatro do mundo, onde botou em prática uma habilidade quase mediúnica para adaptar Shakespeare e autores gregos antigos em histórias divertidas, que ora flertavam com o nonsense, ora descortinavam as faces mais obscuras do homem contemporâneo, arquivos que vêm a lume em filmes caseiros límpidos o bastante para transportar a audiência direto para a época de que se fala.

Ouvem-se suas intervenções breves graças a uma caixa de ressonância instalada junto à traqueia, edos flashbacks de dias mais felizes, emergem registros em que Kilmer aparece às gargalhadas na companhia de Kevin Bacon e Sean Penn nos camarins da Julliard entre uma e outra aula, vaivém cronológico que imprime vitalidade à narrativa e a salva daquele tom melodramático que envenena produções dessa natureza. Bem, o efeito dura só até o meio do segundo ato, com Kilmer enquadrado no meio de fãs autografando bugigangas em troca de gratificação — ainda que, agora mais do que antes, ele precise contar com as memórias que inspira para ganhar a vida. 

Poo e Scott captam a aura megalômana e cabotina do biografado ao tirar dele comentários autoelogiosos sobre ter saído da Julliard para tornar-se famoso com besteiróis como “Top Secret!” ou arrasa-quarteirões da grandeza de “Batman Eternamente”, dando-lhe alguma margem para defesa ao sugerir que Kilmer é o artista possível num mercado cruel, interessado apenas em tirar o máximo lucro de seus profissionais seja no que fosse. No caso em análise isso é parcialmente verdadeiro, uma vez que Kilmer, um “perfeccionista”, como se define, cavou seu próprio abismo.

Os diretores chegam a essa óbvia conclusão ao estabelecer um paralelo muito oportuno entre Kilmer e Marlon Brando (1924-2004), colegas no longa de Frankenheimer, dois homens sensíveis e que exerciam seu ofício como sacerdotes pagãos de uma era de revoluções, até que se cansaram. Brando teve mais sorte nesse adeus.


Filme: Val
Direção: Ting Poo e Leo Scott
Ano: 2021
Gêneros: Documentário/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.