Paul Greengrass talvez seja o maior contador de causos envolvendo ou grandes tragédias ou eventos que poderiam ter acabado dessa forma. No caso de “Capitão Phillips”, que de tão fantasioso só poderia ter se baseado na própria vida, ele corrobora a tendência, já legitimada em “Voo United 93” (2006) ao narrar a desventura do comandante do cargueiro americano MV Maersk Alabama, que transporta um lote de comida para doação em oito de abril de 2009, um dia de trabalho como qualquer outro.
Ao perceber que a embarcação corre o risco de um assalto iminente por piratas somális, consegue tomar pé da situação a tempo de despistá-los. O que ele não sabia é que os ladrões não haviam desistido; numa segunda empreitada, a despeito de todos os esforços de que Richard Phillips lança mão, eles invadem o transatlântico e o que se vê a partir daí é uma das maiores sucessões de guinadas narrativas do cinema, todos muito bem conduzidos pelo diretor. E tudo nos primeiros vinte minutos de projeção.
Os criminosos rendem a tripulação e tem início um jogo de gato e rato entre Phillips e Muse, o líder da gangue. Ainda que subjugado, o capitão não se entrega: está sempre maquinando alguma coisa a fim de minar a resistência dos somális, que aos poucos vão perdendo a hegemonia sobre os marinheiros. Enquanto ainda se refestelam com a sensação do poder absoluto, todavia, os delinquentes deitam e rolam, e por meio da sutileza com que esse núcleo é trabalhado por Greengrass, se percebe a tristeza por trás de sua história. Ainda que “Capitão Phillips” não se proponha a isso, o diretor tece um painel sociológico fascinante ao explorar o perfil dos salteadores.
Não são inocentes, mas vivem num país miserável, entregue à ignorância de líderes religiosos e de uma guerra fratricida que se arrasta há trinta anos, legando apenas a fome e a morte a outros infelizes como eles. É impossível que o espectador não se flagre com uma ponta de dó daqueles pobres-diabos.
É justamente aqui, quando há uma maior ênfase no núcleo desses bucaneiros modernos, mas arcaicos, que “Capitão Phillips” rasga o último véu. O contraponto da naturalidade de Muse, vivido pelo somáli Barkhad Abdi, com todo o tirocínio de Tom Hanks é decerto o ápice no trabalho de Greengrass, um diretor já experimentado nesse método. Não há papel pequeno para Tom Hanks — de acordo com o que se vê nos blockbusters cabeçudos “Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo” (1995), dirigido por Ron Howard; “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg; e “O Náufrago” (2000), levado à tela por Robert Zemeckis; e mesmo em produções desabridamente comerciais e, por conseguinte, descartáveis, caso de “O Código da Vinci” (2006), também de Howard —, e neste ponto ele se reafirma um dos maiores atores que Hollywood já viu, de porte comparável ao de James Stewart (1908-1997) e Clint Eastwood.
A grandeza de Hanks e a espontaneidade de Abdi se retroalimentam, um dos segredos da excelente recepção do longa junto ao público e à crítica, mesmo que se façam necessárias censuras pontuais.
O introito, quando Phillips é levado ao aeroporto pela mulher, Andrea, uma participação afetiva de Catherine Keener, me parece meio ridículo, artificial talvez, mas dou de barato que Greengrass tenha sentido a necessidade de compor a autoridade máxima do MV Maersk Alabama como um homem bom, pai de família exemplar e marido devotado, como se o protagonista não o demonstrasse no decorrer da história, tratando o pé estropiado de Bilal, o mais atrapalhado dos patéticos membros da quadrilha liderada por Muse — ainda que tenha sido o capitão mesmo quem ordenara a seus homens, escondidos na casa de máquinas, que espalhassem vidro pelo chão ao notar que o personagem de Barkhad Abdirahman estava descalço —, isso para deixar de fora o rematado bom-mocismo do próprio ator, que há quarenta anos passa ao largo da bateria de escândalos que fulminam seus colegas.
O amadorismo dos somális é espantoso. Ao saber o que o navio está levando e que o cofre do cargueiro tem apenas trinta mil dólares, é pungente a reação de Muse, que parece conformado em surrupiar a quantia, uma verdadeira fortuna para ele, e ir embora, mas instado por Najee, de Faysal Ahmed, não esmorece. A equipe de Phillips é liberada pelos somális, mas o comandante fica em poder dos bandidos, a essa altura acompanhados de perto por uma legião de militares e policiais. Phillips mantém o sangue frio até o desfecho, quando, enfim, “desaponta” quem assiste.
Primeiro ao entender que a situação poderia derivar para uma tragédia e se lançar ao oceano numa arriscada tentativa de fuga, o que açula a malta, já tomada pela loucura, outro bocado; depois quando Muse é preso, e ele, finalmente, desaba.
Greengrass, mestre do docudrama, apresenta sua obra máxima dispondo de incontáveis recursos para dar veracidade a sua história. O uso da câmera na mão, a escolha por não tratar as imagens noturnas — o que confere o efeito granulado, típico de registros documentais —, além de aspectos menos técnicos, porém de toda forma impactantes, encabeçados em grande parte pelo elenco quase amador e anônimo, conferem à narrativa a tensão que margeia todo o filme.
Ao contrário da parábola bíblica do conflito entre Davi e Golias, em “Capitão Phillips” a única vitória de Muse foi conseguir se livrar da miséria da Somália e, afinal, ser encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima nos Estados Unidos. Richard Phillips saiu de licença médica e retornou ao trabalho catorze meses depois.
Com a jornada do bravo navegante que enfrenta sozinho uma horda de facínoras — facínoras dignos de comiseração, mas facínoras mesmo assim —, o filme de Greengrass acende uma vela para o homem, numa das tramas mais cheias de reviravoltas por minuto da história do cinema. De tempos em tempos, a humanidade, imersa num breu eterno e quase indissipável, necessita de faróis. Querendo ou não, “Capitão Phillips” também guarda sua cota de poesia.
Filme: Capitão Phillips
Direção: Paul Greengrass
Ano: 2013
Gênero: Thriller/Ação
Nota: 10
