Filme da Netflix é uma aula de história e um pequeno diamante do cinema

Filme da Netflix é uma aula de história e um pequeno diamante do cinema

O Oriente continua a ser um dos grandes mistérios que o cinema tenta desvendar. Em “Nas Muralhas da Fortaleza”, parte de um enredo tão repleto de viradas como de detalhes deixa-se à mostra, expondo algumas das razões por que é tão difícil se compreender a visão de mundo de povos apartados da civilização ocidental pelo espaço e pelo tempo.

Épicos adquirem dimensão verdadeiramente fantasiosa no cinema, e é isso o que se dá com o filme de Hwang Dong-hyuk. Os embates pela soberania da Coreia, ameaçada por uma invasão chinesa em 1636, aludem a sentimentos que qualquer indivíduo em qualquer parte do globo é capaz de absorver a perfeição; contudo, “Nas Muralhas da Fortaleza” se aprofunda nos possíveis resultados do jugo estrangeiro sobre uma nação que desde seus primórdios acha muito natural pegar em armas a fim de defender o que considera mais sagrado: o solo onde repousam seus ancestrais.

Dong-hyuk destrincha com sutileza os fatores que permitiram a ascensão da dinastia Qing, a última casa imperial da China, no poder por 268 anos, entre 1644 e 1912. Composta pelos manchus, etnia minoritária e nômade vinda do leste da Ásia, a casa Qing leva oito anos até se estabelecer de fato, com a conquista de Pequim.

Os Qing são responsáveis por feitos históricos ousados, como persuadir o imperador chinês Shunzhi (1638-1661) a abrir frentes de batalha contra reinos contíguos e dominá-los. A escala de mando e tomada de territórios chinesa não encontra resistência, até se deparar com o rei Injo, vivido por Park Hae-il, o 16° monarca coreano pela dinastia Joseon.

Injo não aceita se submeter ao líder chinês, que dá seguimento ao seu plano de conquista e despacha o exército para a Coreia, o que faz com que o rei e seu séquito se enclausurem na fortaleza Namhan durante um inverno inclemente, amparado por seus generais e conservando as linhas de abastecimento. Os guerreiros Qing logo sitiam a edificação, mas o que interessa mesmo em “Nas Muralhas da Fortaleza” acontece dentro do castelo, ambiente em que se desdobra uma queda-de-braço entre os integrantes do governo que apoiam os ministros Choi Myung-gil, papel de Lee Byung-hun, e Kim Sang-Heon, de Kim Yun-seok, que tentam fazer Injo considerar a hipótese de entregar o príncipe herdeiro como refém, para que a usurpação de seu trono transcorra sem derramamento de sangue, e os que aconselham o líder a se preservar irredutível, tanto mais diante de exigência tão ultrajante e perigosa.

Adaptado do romance de Kim Hoon, “Namhansanseong” (sem tradução para o português), de 2007, o roteiro do diretor faz referência a episódios obscuros para o espectador leigo, mas resta clara a intenção de ressaltar o caráter traiçoeiro de Choi, ao passo que para Kim é reservada a aura de grande patriota, de todo consciente de que aquela era mesmo a melhor resolução a se tomar — e o desfecho do filme evidencia o quão dura pode ser a vida mesmo para um rei, sobretudo em tempos em que o mundo tinha outros parâmetros civilizatórios.

Hwang Dong-hyuk recebera críticas por apresentar um trabalho de natureza indiscutivelmente revisionista, que se estende por um tempo inestimável sobre a questão política em sentido específico, quando deveria ter optado por dar preferência às cenas de luta campal em si. No entanto, quem se dedica a estudar a história da realeza coreana encontra no filme do diretor — subitamente celebre no Brasil graças à série dramática “Round 6” (2021) — mais que um ponto de partida.

O longa, que se esmera em locações de tirar o fôlego, todas reais; figurino impecável; atores talentosos e uma trilha que dá ritmo ao filme como nem sempre se vê, mérito do japonês Ryuichi Sakamoto, também presente em “O Regresso” (2016), de Alejandro González Iñárritu; tem a solidez intelectual de um pequeno tratado, sem, todavia, renunciar à sua intenção primeira de entreter.


Filme: Nas Muralhas da Fortaleza
Direção: Hwang Dong-hyuk
Ano: 2017
Gêneros: Guerra/Ação
Nota: 8/10