Do criador de “Round 6”, filme chocante na Netflix vai fazer sua cabeça girar

Do criador de “Round 6”, filme chocante na Netflix vai fazer sua cabeça girar

O sul-coreano Hwang Dong-hyuk já era um fenômeno de audiência muito antes da série “Round 6” (2021), febre entre espectadores de diferentes faixas etárias e níveis de escolaridade, na qual expõe com habilidade a grande miséria da alma humana. Apresentada sob sua forma mais reles, a necessidade do dinheiro para a sobrevivência materializa-se num jogo de vida ou morte cujas regras, uma vez aceitas, tornam-se inclementes demais.

Em 2011, o diretor havia deixado boquiaberto o público mais afeito ao que o cinema produz de mais chocante — mérito (ou culpa) não do cinema propriamente, mas do ser humano, essa fera vesana que domina seu semelhante dos jeitos mais repulsivos. Hwang Dong-hyuk vale-se de seu talento para contar histórias e aproximar realidades, a mais inverossímil a mais possível, o ideal e o concreto. Aquilo que se vê em “Round 6” é um pedaço de cada um, o pedaço torto, o bocado que se perdeu, a face apodrecida do homem.

No caso do ótimo “Em Silêncio”, Hwang Dong-hyukconfere ares um tanto mais funestos à história real de uma série de abusos contra estudantes de Gwangju Inhwa, a instituição voltada ao ensino de deficientes auditivos retratada no longa. Os crimes tiveram início em 2000 e alongaram-se por três anos, até 2003. O Ministério Público da Coreia do Sul chegou a nove casos de estudantes surdos vítimas de humilhações, surras e violência sexual por professores e diretores da escola. O mais novo tinha apenas cinco anos.

O diretor-roteirista parte da chegada de Kang In-ho, o professor recém-contratado vivido por Gong Yoo. O desempenho do ator, o típico herói — incorruptível, amoroso, estoico e, por que não?, bonito —, conquista de imediato. Kang In-ho logo se dá conta de que alguma coisa vai mal, uma vez que, por mais que se esforce, não alcança o coração de seus alunos.

O mestre vai se cercando de toda a delicadeza a fim de ganhar o afeto de seus novos pupilos; à medida que a história evolui, compreende a razão da desconfiança, e a performance de Gong Yoo confere a “Em Silêncio” a justa carga de emoção de que um trabalho dessa magnitude dramática necessita, nem tão seco, a ponto de escandalizar o público, nem, ao contrário, meloso, uma vez que o assunto é demasiado grave para experimentações comerciais ou mesmo narrativas.

O personagem central ganha a ajuda de Seo Yoo-jin, a assistente social militante de causas humanitárias interpretada por Jung Yu-mi, ao lado de quem passa a travar uma luta inglória na intenção de fazer com que os culpados paguem por suas atrocidades. É uma lástima, mas numa sociedade indiscutivelmente mais desenvolvida, como é a sul-coreana em comparação a muitas nações do Ocidente — entre as quais se inclui, em vários aspectos, o Brasil —, também se dão expedientes pouco republicanos no universo judiciário e promotores e juízes pouco conscientes de seu papel constitucional e junto ao povo comprometem a devida condução do processo, e o que se vê é o descalabro que brasileiros conhecemos tão bem, mormente em casos dessa natureza. Mártires e verdugos trocam de lugar, e mesmo que o crime tenha angariado repercussão maciça, em todo o mundo, os acusados receberam sanções irrisórias, saindo da cadeia menos de um ano depois do julgamento, em 2005.

A polêmica voltou à baila em 2011, depois da estreia de “Em Silêncio”, e se assistiu a uma verdadeira revolução. A onda de protestos que varreu o país implicou na reabertura das investigações e na interdição permanente de Gwangju Inhwa, além da promulgação da Lei Dogani, homenagem ao nome original do filme. A Dogani prevê maior prazo para a prescrição de delitos sexuais envolvendo crianças, sobretudo se deficientes, e aumentou as penas. Exemplo a ser reproduzido por qualquer lugar que se pretenda civilizado e uma prova da importância da mobilização social a fim de conquistar e manter os direitos de quem não pode falar por si.


Filme: Em Silêncio
Direção: Hwang Dong-hyuk
Ano: 2011
Gêneros: Terror/Drama
Nota: 9/10