Filme de tirar o fôlego, estrelado por Leonardo DiCaprio e ganhador de três Oscars, está na Netflix Kimberley French / 20th Century Studios

Filme de tirar o fôlego, estrelado por Leonardo DiCaprio e ganhador de três Oscars, está na Netflix

Conquistas demandam bravura, principalmente quando (ainda) não se é o líder. Em 1823, os Estados Unidos nem pensavam em se tornar a potência que são hoje, pouco menos de cinquenta anos depois de sua fundação. Até o século 17, aquele território ocupado por uma massa amorfa de britânicos, franceses, holandeses e espanhóis começou de uma maneira acanhada, só sendo reconhecido como nação à luz da História em 1783, passados sete anos da independência, a 4 de julho de 1776, graças ao Tratado de Paris. O Brasil levou apenas três anos para ser declarado oficialmente autônomo de Portugal, em 1825, mediante o Tratado de Paz e Aliança.

“O Regresso” expõe parte das chagas de um país feito de sangue, de caçadores, de mercenários, de índios, de homens infaustos que se deixavam ludibriar pelas promessas de algum dinheiro mediante muito sacrifício, muita renúncia e muita humilhação. Um dos filmes que melhor disserta sobre os apuros dos primeiros ianques é dirigido por um mexicano — outra das ironias que o cinema tanto gosta de nos pregar. Alejandro González Iñárritu viu no enredo, adaptação do romance de Michael Punke, publicado em 2002 e inédito em português, a chance de falar dos Estados Unidos como poucos o conhecem. El Negro, como o chamam em Hollywood, conduz a trama a partir da biografia de Hugh Glass (1783-1833), um caçador que resiste à ofensiva de uma ursa parda que defendia seus filhotes, é dado como morto, abandonado, sepultado vivo, mas volta do inferno, sedento por vingança. Iñárritu e sua equipe se debruçaram sobre a vida muito particular de Glass por cerca de um ano, filmando em locações no Canadá e privilegiando o emprego da luz natural, um dos grandes trunfos da produção e mérito de Emmanuel Lubezki, ganhador do Oscar de Melhor Fotografia por “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón, em 2014, “Birdman” (2014), também dirigido por Iñárritu, em 2015, e, claro, “O Regresso”, em 2016. Lubezki é o único em seu ofício a conseguir uma estatueta na categoria por três edições consecutivas da premiação.

O western antes do western. Essa poderia ser uma definição um tanto reducionista de “O Regresso”, que proporcionou a Leonardo DiCaprio o grande papel de sua carreira, até o momento não superado — pelo qual também recebeu o Oscar de Melhor Ator. González-Iñárritu, também premiado como Melhor Diretor pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, empreendeu aquela que poderia ser classificada como sua obra máxima sob a forma de um mergulho no coração (obscuro) dos Estados Unidos. Não havia o western, não havia o eldorado — uma vez que, na falta de ouro, os exploradores se conformavam com as peles, moeda de escambo com a qual se faziam todas as operações comerciais de então, entre americanos, indígenas, espanhóis e, em menor proporção, os próprios mexicanos —, não havia glamour em nenhum sentido.

O diretor se vale da atmosfera dos Estados Unidos como uma terra mí(s)tica para elaborar teses interessantes a respeito da origem da pujança americana, um país ainda por se conhecer, por cristalizar uma identidade, mas desde sempre atento à imprescindibilidade de estabelecer pontes comerciais, rascunho do que viria a ser o capitalismo, primeiro o americano e, por extensão, o praticado nos quatro cantos do globo, naquilo que ele tem de melhor (livre mercado, possibilidade do indivíduo desenvolver seus talentos para ganhar dinheiro, concorrência) e de mais torpe (injustiça, abusos, escravização de quem acaba por sucumbir ao horror).

A odisseia de El Negro sobre um homem e sua firmeza em sobreviver fala ao ressentimento, que degringola em ódio e na busca por reparação. Francis Bacon (1561-1626), o polímata inglês por excelência, teve publicadas três versões de seus “Essayes or Counsels” (“ensaios ou conselhos”, em tradução literal, de 1597, 1612 e 1625), sendo “Of Revenge” (“sobre a vingança”, idem) o texto mais célebre. Nele, Bacon admite a vindita como uma forma bestial de se combater a iniquidade, desafio de monta à constituição de um Estado de direito. Dotado de uma das Cartas Magnas mais sucintas e eficazes de todas as democracias do Ocidente, baseada em sete artigos fundamentais, já a partir de 1789 — apenas treze anos de declarados livres da subjugação da Inglaterra de Jorge 3° (1738-1820) —, os Estados Unidos passam a contar com uma pálida noção do que se viria a conhecer como império da lei. Todavia, a extensão de seus domínios e sua inexperiência como povo são dificuldades de vulto para se fazer dominar a razão sobre a barbárie, o que se constata de maneira óbvia no personagem de Tom Hardy, o grande antagonista do filme.

John Fitzgerald só assente em ficar e tomar conta de Glass, entre a vida e a morte depois do ataque da ursa, porque tem a palavra de receber trezentos dólares, um bom dinheiro àquela época. Mesmo assim, logo dá sinais de que não está tão interessado em cumprir a tarefa e faz ao moribundo uma proposta indecente. Valendo-se de um discurso extorsivo, que apela ao fato de Glass ter se tornado uma ameaça à vida dos outros dois homens que ficaram com ele para assisti-lo, Fitzgerald aproveita um momento breve em que está a sós com aquela figura exânime para lhe sugerir que aquiesça em dar cabo de sua vida. Como só consegue grunhir, uma vez que teve o pescoço dilacerado pelas garras da ursa, o vilão dá a Glass a alternativa de piscar se estiver de acordo. Numa das sequências mais perturbadoras do cinema recente, o personagem de DiCaprio hesita, mas como pressente que o outro está mesmo determinado a ir até o fim, concorda.

Num trecho tão curto de “O Regresso” há muito mais filosofia do que em toda a pregação de tantos autoproclamados filósofos contemporâneos. Glass havia consentido em ser morto, pode dizer alguém — embora tenha de reconhecer que ele fora é vencido pelo cansaço, além de não ser esse o fulcro da questão. O problema filosófico pelo qual passa a se amparar o filme reside no fato de que, em Fitzgerald sendo um homem íntegro, jamais passar-lhe-ia pela cabeça propor tal coisa, muito menos a alguém completamente destituído do pleno gozo de suas faculdades intelectuais, que não podia sequer falar. Fitzgerald é pego pelo filho bastardo de Glass que, conforme se assiste em seguida, obsta a morte do pai, mas paga seu destemor com a própria vida, da mesma forma como deveria ter agido o outro. Glass sobrevive e aí começa a segunda parte de seu calvário, até reencontrar Fitzgerald e os dois terem um providencial acerto de contas.

Em “O Regresso”, a natureza do homem caldeia-se à essência do mundo, cada um mostrando seu lado mais silvestre, mais indomável e mais pernicioso. Este é um filme que lembra-nos que as verdadeiras feras estão sempre muito bem escondidas.


Filme: O Regresso
Direção: Alejandro González Iñárritu
Ano: 2015
Gêneros: Aventura/Faroeste
Nota: 10