Ganhador do Oscar e aplaudido de pé por 7 minutos, filme com Kate Winslet está na Netflix Divulgação / The Weinstein Pictures

Ganhador do Oscar e aplaudido de pé por 7 minutos, filme com Kate Winslet está na Netflix

Em algumas circunstâncias, o passado é como um monstro que pensamos encerrar numa gaiola de ouro, nutrindo e acalentando, até que ele, afinal, revela sua verdadeira força. A paixão eminentemente lúbrica de um menino por uma mulher quase vinte anos mais velha tem todos os componentes para não dar certo, e em juntando-se a essa relação explosiva um insuperável abismo ideológico e moral, restam pouquíssimas chances de que golpes de parte a parte não acabem em toda sorte de destruição. Retrato dos enfrentamentos do corpo com a alma, da necessidade com a honra, “O Leitor” é, grosso modo, um tratado sobre ética e a importância das escolhas, que não raro tornam-se maldições a pairar sem trégua acima de espíritos sensíveis. A direção segura de Stephen Daldry transforma as páginas do romance homônimo do alemão Bernhard Schlink, publicado em 1995, num drama de guerra manifestamente ambíguo, onde quase nada é o que parece e não é prudente classificar ninguém como inocente ou culpado de pronto. Daldry, produtor e diretor de quatro episódios da badalada “The Crown”, série que conta os bastidores da família real britânica da coroação de Elizabeth 2ª (1926-2022) à morte de Diana de Gales (1961-1997), coloca em prática a vasta experiência em recursos técnicos a fim de fazer o público ter certeza de que está diante de um conto real de abjeção e falso arrebatamento, num período muito delicado da História.

Em 1995, Michael Berg levanta-se ao lado de uma mulher, provavelmente pela primeira e última vez, e se arruma para ir trabalhar, dando a moça a desculpa de que terá uma semana atribulada e, por isso, ela não estranhe se ele sumir. Esse é o gatilho que o transporta para 1958, quando, aos quinze anos, chega a Berlim do interior da Alemanha num trem, faminto, doente, terrivelmente só, anda algumas quadras e estanca num beco escuro e úmido, talvez para morrer. Hanna Schmitz passa por ele, apressada, mas volta, o leva para casa e o assiste, com dedicação um tanto patológica. Nenhum dos dois parece inclinado ao amor puro e ainda menos ao platonismo, e não demora para que Michael comece a frequentar a cama da anfitriã, que o vê como um garoto e faz questão de expressar seu distanciamento.

Michael, vivido por um atento David Kross na primeira fase, aceita a subjugação de Hanna, que demonstra-lhe afeto, a seu modo. Hanna promete ao novo hóspede todo sexo quanto desejar, desde que antes ele leia para ela, e Kate Winslet capta à perfeição a loucura e a sedução de sua personagem, ajudada pelos enquadramentos sagazes do diretor, que a põe nua em várias cenas, mas sempre observando o fronteira tênue entre o artístico e o vulgar. Um dia, encontra o apartamento dela vazio, sem um bilhete sequer, e oito anos depois, estudante de direito, atravessando os corredores de umtribunal, avista Hanna escoltada por um grupo de policiais, num dos primeiros julgamentos dos colaboradores de Hitler.

O vaivém no tempo cronológico do roteiro de Schlink e David Hare, bem-administrado por Daldry, volta ao Michael adulto, performance mesmerizante de Ralph Fiennes, mais amargurado do que nunca, sofrendo calado o maior trauma de sua vida, que aflora-lhe ao horizonte da memória feito um relâmpago, iluminando tudo no espaço de um instante para extinguir-se logo depois. Ele pensa no abandono involuntário que infligiu àquela mulher, ao passo que jamais perde de vista seus crimes, e disso, claro, surge a grande celeuma moral que tem de resolver, de si para si, sabendo que ninguém o pode ajudar. O envolvimento com Rose Mather, a judia interpretada por Lena Olin, é uma volta ao dias no apartamento enxovalhado de Hanna, com o sinal invertido, por óbvio, que igualmente lhe dói. Se a anti-heroína de Winslet é a representação máxima da indignidade e do opróbrio, ele não fica atrás. E quanto mais nada, mais afunda nisso.

“O Leitor” é um analogia bastante sutil que tenta explicar a força do acaso na vida do homem, sem chegar a nenhuma conclusão monolítica — e aí está sua superioridade e sua beleza. Todos temos vergonhas a esconder, mas é necessário coragem para dizê-lo, sobretudo em tempos de moralidade artificiosa, em que tudo, absolutamente tudo, é motivo para condenações. Justas ou não. 


Filme: O Leitor
Direção: Stephen Daldry
Ano: 2008
Gêneros: Drama/Romance/Guerra
Nota: 9/10