Filme com Ryan Reynolds é um dos mais vistos da história da Netflix Doane Gregory / Netflix

Filme com Ryan Reynolds é um dos mais vistos da história da Netflix

“O Projeto Adam” não acende de pronto. Shawn Levy, também diretor de “Free Guy: Assumindo o Controle” (2021), parece ter tomado gosto pelo assunto, muito competente ao desenvolver, com habilidade ímpar, o mote do tempo elástico, misturando ao eixo da narrativa, nos momentos cruciais, os elementos de crítica social e distopia de que o filme trata sem proselitismo dessa ou daquela natureza. Para Levy, que volta a fazer de Ryan Reynolds seu protagonista, a natureza humana não se livra jamais de seu caráter frágil, está todo o tempo a precisar de um salvador, de um redentor profano, que parece igualmente perturbado por tanta ignomínia. O diretor disseca o tempo, fomentando a conclusão óbvia de que cada época tem seus próprios problemas, uns de mais fácil solução, outros que nos absorvem por completo, e só uma razão muito forte nos faria retroceder algumas décadas, onde teríamos de enfrentar outra vez medos já superados, nos esperariam as pessoas que tentaram nos fazer mal (e, em muitas ocasiões, fizeram mesmo). Nesse lugarzinho mágico, estão cristalizadas as lembranças inestimáveis, as que nos definem e acabaram por nos fazer quem somos, pessoas de quem hoje temos orgulho. Corrigir erros de épocas mortas, ou, ainda melhor, evitar que ocorram desperta a cobiça do homem há algum tempo, malgrado toda grande transformação implique consequências às vezes devastadoras. 

Ryan Reynolds apresenta a performance de sua carreira na pele de Adam Reed, que vem à hora certa e encontra o ator maduro e sensível o bastante para dar vida a esse herói quase antitético, deslocado e cínico, que demora a aparecer, embora já diga a que viera logo na primeira sequência do longa. Adam pilota sem muita perícia um jato que, segundo o roteiro de Jonathan Tropper, Mark Levin, Jennifer Flackett e T.S. Nowlin, está sendo roubado para que ele consiga se trasladar dos anos 2050 para 2022. Ao que tudo indica, viagens no tempo, principalmente as retrocessivas, do futuro (ou presente, para ele) com destino ao passado são um expediente comum e Adam vê nisso um meio de interferir em circunstâncias que o afetam diretamente. O protagonista algo inconsequente e leviano que se desenha na introdução de “O Projeto Adam” é sem dúvida um desdobramento do menino entre doce e rebelde que fora, e essa sua personalidade complexa, tão rica de nuances, fica evidente na composição de Walker Scobell, o Adam Reed de 2022. Aos 12 anos, Adam está recebendo a terceira suspensão por brigar com um colega, muito mais forte que ele — ou seja, além de humilhado pelo garoto, é ainda mais ultrajado pela punição, que o faz sentir-se mesmo um pária. Scobell equilibra-se bem entre a inépcia de seu personagem quanto a se ajustar e o jeito racional, espantosamente sensato para alguém da sua idade, visto pela maneira como lida com a situação, deixando atônita a mãe, Ellie, de Jennifer Garner. Nas passagens em que contracenam, Levy consegue transmitir o amor de parte a parte, momento da história em que o diretor investiga o pesar de Ellie, viúva há mais de um ano e presa a tal ponto àquele passado, recente, mas doloroso, que não é capaz sequer de se desfazer das roupas do marido.

O encontro entre os dois Adam, o de Scobell, estraçalhado por dentro, e o de Reynolds, sangrando por fora, deixa evidente a sintonia entre os dois atores e os personagens que defendem, ambos vibrando no mesmo diapasão, observando o ritmo um do outro e, destarte, construindo um Adam bastante coerente e factível, em que o sarcasmo afiado é mesmo a grande marca. O Adam do presente, todo o tempo algumas notas abaixo dos outros mortais, demora para se dar conta de que os dois são a mesma pessoa — a despeito da cicatriz embaixo do queixo e do relógio deixado de herança pelo pai —, ao passo que o do futuro rememora as fraquezas daquele garoto, as suas próprias fraquezas, e conclui que tudo de que ele precisa é de amor e, o mais importante, tolerância. Bem ou mal, foi graças a esse menino um tanto ingênuo demais, vítima de sua própria bondade, que Adam se tornou o homem forte e determinado que conquistou tudo o que quis.

Até aí, foram exibidas as melhores partes do filme, mas como se trata de um enredo de ficção científica, as reviravoltas próprias do gênero, uma compilação meio previsível de “O Exterminador do Futuro” (1984), dirigido por James Cameron e “De Volta para o Futuro” (1985), levado à tela por Robert Zemeckis — e ainda reservando espaço para pílulas de “Alta Frequência” (2000), de Gregory Hoblit —, tomam o centro da narrativa, ponto em que os personagens de Mark Ruffalo, como Louis, o pai de Adam, e Zoe Saldaña na pele de Laura, sua mulher, são quase que literalmente jogados de um para o outro lado do cenário futurista sem grandes novidades, pastiche de algum dos incontáveis episódios de “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas ou “Eu, Robô” (2004), de Alex Proyas. Os enfrentamentos de Adam e Laura contra a vilã Maya Sorian, de Catherine Keener, também chegam à mesa frios, com pelo menos quarenta anos de atraso, muito similares, para ser elegante, aos da saga de Lucas, embora bem coreografados.

Reviver detalhes perdidos na trajetória de um personagem messiânico, responsável por salvar a humanidade; impedir o nascimento de facínoras que comprovadamente ameaçaram a paz na Terra; ou defender do extermínio iminente povos cuja origem remonta a uma era aparentemente inalcançável, seriam a maior revolução já levada a termo pelo homem, e filmes como “Projeto Adam” esboçam a grandeza que a efeméride teria. Levy, no entanto, faz questão de que seu público também reflita sobre os problemas, novos e insolúveis, que o reingresso em eras até então mortas certamente trariam para uma humanidade incapaz de lidar com os enroscos que criou no ontem, resvalam no agora e, por natural, se derramam nos amanhãs. Contudo, o que “O Projeto Adam” tem de genuinamente vigoroso é sua capacidade de colocar em perspectiva uma mesma pessoa, sob um escrutínio tão brutal que a faz parecer duas, o que cala fundo em qualquer um com mais de doze anos de idade. Todos somos meio Adam Reed, em versões mais ou menos enérgicas, obrigados a suportar os golpes da vida e seguir em frente, na hipótese mais branda, ou fazer justamente desses golpes o estímulo para mudar tudo, de maneira radical. De preferência, sem ressentimentos e controlando a vontade de também criar nossos bodes expiatórios.


Filme: O Projeto Adam
Direção: Shawn Levy
Ano: 2022
Gêneros: Ficção Científica/Drama/Aventura
Nota: 8/10