Filme, eleito pela ciência o mais agonizante e perturbador da história, está na Netflix e você não assistiu Reid Chavis / A24

Filme, eleito pela ciência o mais agonizante e perturbador da história, está na Netflix e você não assistiu

Para os personagens de “Hereditário”, as humanas misérias ressoam como sinos de uma estranha catedral perdida no deserto, reverberando aquele barulho aos confins do mundo na lembrança da danação eterna, fim de que muito poucos conseguem se ver livres em se tomando ao pé da letra o pessimismo e mesmo o niilismo da mensagem central. Ari Aster faz de seu filme uma espécie de caldeirão em que despeja a pletora de velhas mágoas e tantos outros sentimentos malditos que atazanam uma família, os fervendo e refervendo sem pressa até que desse caldo emerja a substância com a qual elabora uma trama marcada pelo rancor. Primeiro, contudo, o diretor dedica-se ao jogo de gato e rato que atravessa três gerações, e com o que vai se formando desse processo compõe uma história excruciante, que segue doendo mesmo depois de vencidas as mais de duas horas de projeção, que transcorrem numa cadência entre ágil e reflexiva, mas nunca sem ritmo. Para Aster, mesmerizar o público, incrementar o suspense e fazê-lo metamorfosear-se num terror psicológico que ultrapassa a tensão e molesta também a disposição física de quem ousa assistir até o final é parte de uma estratégia acertada, capaz de superar as melhores expectativas de quem se flagra enfeitiçado pelo que vai à tela e surpreender aqueles que resistem — até certo ponto —, uma minoria quiçá ruidosa, mas sem vez numa gradação de silêncios.

Aster dá corpo a um enredo de sua própria lavra, não obstante tenha-se a impressão de que adapte um dos contos plenos do realismo mágico de Edgar Allan Poe (1809-1849) ou do chamado horror cósmico de H. P. Lovecraft (1890-1937), onde sobrepujam aspectos que o racional não alcança, quando se procura mesmo dar toda a ênfase ao imponderável. Num piscar de olhos, o que se compreende de sua opção por ter disposto um parcíssimo resumo de seu filme numa tela negra no prólogo é que deve ter querido emular a força do infortúnio da vida ela mesma, o que efetivamente consegue. A uma análise irrefletida, “Hereditário” assemelha-se a uma nota de jornal, escandalosamente cerimoniosa, comunicando um crime bárbaro, mas que não tarda a ser esquecido no ramerrão do embate diário das mulheres e homens comuns contra seus leões mais íntimos. Ainda no primeiro ato, o diretor municia a audiência com alguma orientação a respeito de onde quer chegar, e logo se põe a rasgar a fantasia que envolve seu roteiro e seus personagens, aludindo à morte de uma velha senhora, a mãe e avó que parecia o esteio de um clã que engolfado em segredos.

Toda cautela é pouco quanto a se absorver o rol de anátemas a espreitar os Graham, começando por Annie, a mãe sobrecarregada e histérica de Toni Collette — e nunca se pode afirmar com toda a certeza o que a define com mais precisão, se o cansaço de tudo, se a histeria. Como entre eles nada é o que parece, Annie se esforça por transmitir ao marido, Steve, de Gabriel Byrne, que os dois têm um casamento feliz. Bem, isso até poderia ser verdade não fossem os pais de Peter, o primogênito vivido por Alex Wolff, e Charlie, de Milly Shapiro, a fonte das maiores amarguras um do outro, por razões diametralmente contrárias e em igual proporção. Do segundo para o terceiro ato, Aster tira alguns ciscos dos olhos de quem se negava a reconhecer a grandiosidade algo oculta do longa; é o momento em que não disfarça mais sua intenção de falar sobre as inconveniências da vida a dois, idealizada por tantos, em especial depois da vinda dos filhos. No desfecho, numa atuação minimalista onde nada sobra nem falta, Wolff brilha incorporando um certo Paimon, um dos fatores que explicam tanta loucura e tanta tragédia. Mas longe de ser o único.


Filme: Hereditário
Direção: Ari Aster
Ano: 2018
Gêneros: Thriller/Mistério/Terror/Drama
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.