Quase sublime, um dos mais belos filmes de 2023 acaba de estrear na Netflix e vai tocar sua alma Divulgação / Netflix

Quase sublime, um dos mais belos filmes de 2023 acaba de estrear na Netflix e vai tocar sua alma

O tempo puxa arrependimentos, que trazem lembranças, que por sua vez requenta mágoas, e as mágoas, essas ninguém sabe direito o que podem fazer com o destino de uma pessoa. “Já Era Hora” castiga os costumes brincando com uma das coisas a um só tempo mais fundamentais e mais negligenciadas da vida, nossa equivocada e frágil ideia de tempo, nossa estúpida arrogância quanto a achar que o sobe e desce dos ponteiros, a passagem dos dias, a marcha silenciosa e constante dos anos, deveria esperar por nós, ou quando menos teria de mostrar-se pouco mais condescendente, um tanto mais grata, sendo que nunca dependeu de nós, jamais nos propôs acordo de nenhuma espécie, muito pelo contrário: somos nós quem lhe devemos e estamos sempre perdidos sobre o que esperar do senhor da vida e, principalmente, da indesejada morte.

O protagonista do filme do italiano Alessandro Aronadio experimenta tempos caóticos — malgrado o tempo por si só não seja caótico, fluido ou inconstante, apenas o tempo; o tempo apenas existe, o tempo apenas é. O diretor pinça de seu roteiro, escrito com Renato Sannio, elementos um tanto óbvios, como uma contagem regressiva num baile de Ano-Novo, ou o tique-taque de um relógio a fim gravar no público a curiosidade quanto ao mote central, que se deslinda sem pressa. Logo se tem claro que Dante, o protagonista vivido por Edoardo Leo, é um homem cercado. Seus aniversários transcorrem sempre da mesma forma atabalhoada, sem um respiro para as panquecas da mulher, Alice, de Barbara Ronchi, no café da manhã, ou abraços demorados em Galadriel — blague metalinguística um tanto desnecessária —, a filha que cresce a despeito de seus rogos. No fim do dia, Alice prepara-lhe uma festa, a qual ele tenta comparecer. Por ter ficado até mais tarde no escritório, o engarrafamento de uma avenida cheia de outros carros, dirigidos por outros motoristas afoitos e também esmagados pelos planos que nunca se realizam, lhe impõe mais uma ausência, e nesse momento, Aronadio passa a ser mais específico no que toca ao inferno de seu anti-herói.

Resta inescapável uma alusão a “A Divina Comédia” (1320), de Dante Alighieri (1265-1321), homenagem talvez involuntária, até meio ligeira, porém evidente. O personagem de Leo experimenta o tormento de não ter mais nem o mínimo controle de que todos dispomos sobre o que fazemos — e, principalmente, sobre o que não fazemos —, decerto uma das mais intoleráveis agruras a que alguém é forçado a se sujeitar. “Feitiço do Tempo” (1993), levado à tela por Harold Ramis (1944-2014), é outra das referências que vem à memória, uma vez que como Phil, o desditado meteorologista de Bill Murray, fica preso no mesmo dia por anos a fio, assistindo de camarote ao naufrágio de seu casamento em contraposição ao sucesso profissional (ao menos isso), àquele movimento tão particular da vida, sem muito sentido, mas igualmente sábio, que todos nos flagramos a criticar em muitas ocasiões. As guinadas do filme nem são precisamente reviravoltas, uma vez que se espera por elas como se espera pelas respostas que a vida não tem, mas a morte, sempre indesejada, trata de nos dar. Contudo, o modo como Aronadio vê a existência e o cessar de tudo, dos quais tomamos pé aos quarenta anos, queiramos ou não, faz de “Já Era Hora” uma experiência sublime, quase transcendental.


Filme: Já Era Hora
Direção: Alessandro Aronadio
Ano: 2022
Gêneros: Comédia romântica
Nota: 9/10