Na descida da Misericórdia

Na descida da Misericórdia

Encontrei o Jorge Aristo num fim de tarde desses pelas ladeiras de Olinda em pleno carnaval. A cidade pulava eufórica, e eu me esgueirava pela calçada, evitando passar pela muvuca. Foi quando esbarrei nele fantasiado de morte.

Ele me abraçou emocionado, fazia o quê, uns vinte anos que não nos víamos? “Acho que sim”, eu disse pra não prolongar o assunto. Meu estado etílico não me permitia puxar nada pela memória, nem contar os anos até aquele momento. De fato, falar já era um grande esforço: eu tinha chegado de manhã em Olinda, perambulado por suas vielas, bebido bastante cerveja, as pernas já não aguentavam mais, tava inclusive indo embora, foi um prazer, Jorge, nos falamos. Ele insistiu: “Tá descendo?” Sem tempo hábil para elaborar um despiste, rendi-me: “Estou”. “Eu te acompanho.”

Uma sensação estranha se apossou de mim. Lembrei de como o Jorge era chato, embora se esforçasse pra ser legal. Aliás, corrijo-me: não é que ele fosse chato; é que ele era o tipo do cara que dava errado em tudo, sua vida era um eterno infortúnio.

 Tentei um assunto trivial:

— E aí, como vai a vida?

— Ruim. Muito ruim.

Minha cara de interesse escondeu o arrependimento de ter perguntado.

— Lembra da Clarinha? — ele se empenhava em acompanhar meu passo.

Clarinha era a paixão irremediável de Jorge, mesmo ela tendo dado pra todos da turma antes de ficar com ele.

— Não sei se você sabe, mas ela me trocou por um gringo.

— Cara, que chato! (Meu arrependimento aumentava.)

— Teve uma filhinha linda com ele. Foi morar na Europa, numa cidadezinha no interior da Inglaterra.

— Ah, que legal (eu já estava praticamente em marcha atlética).

— Sim, legal. A gente sempre se falava. Tu sabes o quanto eu amava aquela mulher, né?

Respondi um monossílabo apressado. Ele continuou:

— O gringo era gente fina, mas ela não era feliz com ele.

Vinha sempre ao Recife, a gente se encontrava. Eu via na cara dela que ela não era feliz, e que nunca me esqueceu.

Nesse momento, ele parou. Era minha chance; estiquei a mão para me despedir, ele me puxou e me falou ao ouvido:

— Preciso te contar uma coisa. Fui eu… fui eu que as matei.

Fiquei desconcertado.

— Que conversa é essa, Jorge?

— Como te disse, mesmo depois que ela me trocou, continuamos próximos. Eu sempre dava um jeito de estar por perto. Até me fiz de amigo do gringo. Eu queria na verdade era tomar ela de volta.

Olhou ao redor, certificando-se que ninguém nos ouvia:

— Há uns dias, ele veio só para o Recife. Eu prontamente me dispus a recebê-lo em casa. Não por amizade, claro; eu tinha um plano decisivo, e tudo dependia de tê-lo como hóspede.

Olhei-o desconfiado. Ele prosseguiu:

— Na penúltima noite dele aqui, dei uma festa em casa, e o droguei. Ele ficou loucaço! Eu tinha chamado umas garotas e, na hora adequada, bati fotos, mandei pra um amigo e pedi-lhe que as enviasse a ela, anonimamente. Foi tiro e queda! No outro dia, ela ligou pra ele enfurecida, disse-lhe uns muitos desaforos. Ele tentou se explicar, não lembrava de nada, ela lhe mandou as fotos, ele não teve o que dizer. Tinha funcionado: ela ia voltar pro Brasil. Ela ia voltar pra mim, entende?

Surpreso, eu disse.

— Ela ia? Não vem mais?

Ele puxou o celular do bolso, me mostrou a tela: “Airbus cai no Atlântico com 228 pessoas a bordo. Não há sobreviventes”.

Arregalei os olhos, horrorizado.

— Fui eu que comprei as passagens, entende? Fui eu que comprei as passagens.

Depois, ele se embrenhou num beco. Fiquei um tempo parado, sem saber o que pensar ou fazer. Mas o cansaço e o enfado me impeliam para casa. Fui todo o trajeto em silêncio.

No outro dia, resolvi ligar pra ele. Sacanagem deixá-lo só nessa situação. Então soube que não havia mais nada a fazer: Jorge morreu num acidente naquela madrugada, voltando para casa. No carro, os bombeiros encontraram garrafas de bebida e uma cartela de comprimidos tarja preta.