O filme começa sem pedir licença ao imaginário confortável associado a Cinderela. A morte súbita do pai, caído à mesa como um erro de cálculo social, reorganiza imediatamente as forças da narrativa. Rebekka, vivida por Ane Dahl Torp, surge menos como vilã e mais como produto de uma lógica antiga: sobreviver exige estratégia, e estratégia exige sacrifícios. Ao levar Elvira e Alma para a casa do novo marido, ela aposta tudo numa promessa que se dissolve antes mesmo do luto. A precariedade não é apenas econômica; ela contamina afetos, escolhas e limites morais. Nesse terreno instável, o filme constrói sua tensão principal: quem merece ser amado quando o amor virou moeda?
Elvira, interpretada por Lea Myren, ocupa o centro da narrativa não por heroísmo, mas por fratura. Seu corpo, constantemente avaliado, corrigido e violentado, carrega o peso simbólico de uma sociedade que exige beleza como passaporte. Ela não reage com cinismo nem crueldade, mas com um desejo quase infantil de pertencimento. A relação com a mãe oscila entre proteção e abuso, enquanto a presença de Agnes intensifica a comparação cruel. Elvira não disputa apenas o príncipe; disputa o direito de existir sem precisar se refazer em pedaços.
Agnes, vivida por Thea Sofie Loch Næss, rompe com a imagem da jovem dócil e etérea. Aqui, a futura Cinderela sabe exatamente o efeito que causa e usa isso com precisão social. Seu romance escondido com o rapaz do estábulo contrasta com a imagem de virtude que vende ao príncipe Julian, papel de Isac Calmroth. Essa duplicidade não transforma Agnes em antagonista simples; ela expõe como a moral funciona como ornamento, ajustável conforme a plateia. O conto deixa de ser sobre bondade recompensada e passa a discutir performance.
Horror físico como espelho social
★★★★★★★★★★




