Quando pensamos que a vida começa a aconchegar-se na doce monotonia de que julgamos ser dignos, ela sempre trata de engendrar-nos as surpresas que nos fascinam ou nos arrasam. Por essas e outras é que a história central de “Diga Quem Sou Eu” consegue ser, a um só tempo, tão familiar, com a licença do trocadilho, e tão exclusivamente pontual. Da mesma forma que a morte cerca o existir, situações de congraçamento e quadras infelizes rondam os lares de mulheres e homens comuns mundo afora; no entanto, o documentário de Ed Perkins fica a um milímetro da ficção ao escarafunchar reminiscências bastante particulares de uma dupla de irmãos gêmeos acerca de uma tragédia que, por óbvio, impacta suas trajetórias e soterra os dois com mudanças indesejadas. E é do meio desses escombros que a história surge.
Fotografia noir e ecos de “Três Estranhos Idênticos”
Uma sala escura, subitamente iluminada, presta-se a uma metáfora da vida de Alex e Marcus Lewis, e o diretor respalda-se justamente de imagens como essas para buscar no fundo da alma dos dois a revelação que estarrece o público, depois de ter preparado o terreno com toda a cautela. Incontinente, vem a lembrança do espectador mais afeto à matéria e ao gênero a lembrança de “Três Estranhos Idênticos” (2018), em que Tim Wardle e Grace Hughes-Hallett vasculham as memórias não de dois, mas de um trio de gêmeos univitelinos, separados no nascimento, reunidos graças a uma manobra inexplicável do destino e, bem como os irmãos da narrativa de Perkins, tem de se haver com detalhes ignominiosos de sua história. A diferença cabal a fazer este trabalho superior ao de Wardle e Hughes-Hallett é a abordagem sempre esmerada em aspectos secundários numa produção dessa natureza. A fotografia de Erik Wilson e Patrick Smith rouba a cena muitas vezes com suas sucessões de chuva descendo sobre uma janela em azuis-petróleo entremeados por pinceladas de negro, conferindo ao resultado final, conscientemente ou não, a rotulagem de um noir sofisticado. Como ali é tudo verdade, tal dispositivo exerce a função dialética de amenizar a catástrofe psicológica de Alex, sobreposta ao acidente de moto que transforma o que entende de si mesmo e dos que integram seus círculos mais íntimos para sempre, mas, por natural, puxa para o filme todo o macabro do que se conhece minutos depois, um fardo demasiado grande para se carregar sozinho.
Da tragédia ao acerto de contas: 1982, 1995 e 2019
Do desastre que por pouco não mata Alex, ocorrido em 1982, quando os gêmeos contavam dezoito anos, Perkins salta para 1995, momento em que o diretor descreve a morte de Jill, a mãe deles, e daí para 2019, com o acerto de contas dos dois — que, evidentemente, não pode ser completo porque seu algoz já não vive. Caminhando por esse terreno pantanoso, “Diga Quem Sou Eu” proporciona uma reflexão doída, mas ponderada, sobre culpa e remorso, indignação e clemência, muito necessária para quem a recebe, e ainda mais para quem tem a graça de concedê-la.
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