“Perdido em Marte”, disponível completamente gratuito no Mercado Play e também por assinatura no Disney+, parte de uma escolha conceitual pouco comum em produções espaciais: recusar o deslumbramento fácil. Marte não surge como paisagem exótica nem como promessa futurista, mas como um lugar hostil no sentido mais burocrático da palavra. Poeira, silêncio, falhas técnicas. É nesse ambiente que Mark Watney, interpretado por Matt Damon, é dado como morto após uma tempestade e abandonado por sua equipe. O filme não dramatiza o erro inicial; ele o aceita como dado, quase como um acidente administrativo. Essa frieza inicial define o tom. Ridley Scott transforma o planeta em um problema logístico contínuo, onde sobreviver significa calcular, plantar, reaproveitar e esperar. A aridez não é metáfora elevada, mas condição prática. O isolamento não pede lágrimas, pede planilhas. E isso desloca o espectador para um terreno desconfortável: acompanhar alguém que só segue vivo porque insiste em pensar.
Watney passa a registrar sua rotina em vídeos que misturam humor defensivo e desgaste progressivo. A leveza não vem de piadas soltas, mas da necessidade psicológica de manter algum senso de normalidade. Matt Damon constrói esse homem com um carisma funcional: ele precisa ser suportável porque passa longos trechos sozinho em cena. A solidão aqui não vira delírio nem transcendência. Ela se manifesta no tédio absoluto, na repetição exaustiva de tarefas, na convivência forçada com músicas dos anos 70 escolhidas pela comandante Melissa Lewis, vivida por Jessica Chastain. O detalhe musical funciona como ironia cruel: referências culturais viram ruído quando não há alternativa. Sobreviver deixa de ser aventura e passa a ser rotina desgastante. O filme entende que o maior risco não é morrer de uma vez, mas continuar vivo tempo demais sem estímulo.
A Terra como problema moral
Quando a NASA descobre que Watney está vivo, a narrativa se divide. De um lado, ele planta batatas em Marte; do outro, diretores, engenheiros e políticos tentam decidir o que fazer com essa informação. Jeff Daniels interpreta Teddy Sanders como um gestor pragmático, capaz de tratar o abandono como opção aceitável. Já Vincent Kapoor, de Chiwetel Ejiofor, representa a fricção ética: salvar um homem não é só cálculo de risco, é afirmação de valores. O filme evita discursos grandiosos, mas deixa claro que deixar Watney para trás significaria aceitar um limite moral perigoso. A presença chinesa no plano de resgate amplia esse debate, apontando para um futuro onde cooperação internacional não é idealismo, mas necessidade. A política espacial surge sem romantização, movida por pressão pública, imagem institucional e culpa coletiva.
Entre o espetáculo e a sobriedade
Ridley Scott conduz a narrativa com ritmo seguro, alternando tensão e alívio sem recorrer ao excesso emocional. Há momentos de celebração técnica que beiram o entusiasmo patriótico, especialmente nas cenas de controle de missão, mas o filme nunca perde de vista seu eixo principal: um homem tentando não enlouquecer enquanto resolve problemas concretos. A superfície marciana convence, mesmo quando a gravidade reduzida é ignorada, um detalhe que o próprio filme parece pedir que deixemos passar. Os efeitos são discretos e eficientes, sempre a serviço da narrativa. Ao final, “Perdido em Marte” não vende grandiosidade cósmica nem transcendência humana. Ele propõe algo mais incômodo e, talvez, mais honesto: a ideia de que o progresso depende menos de heroísmo e mais de persistência entediante, decisões éticas imperfeitas e da recusa em aceitar que alguém seja descartável, mesmo a milhões de quilômetros de distância.
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