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Keanu Reeves, Anthony Hopkins e Gary Oldman: elenco estelar em filme de Coppola está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Keanu Reeves, Anthony Hopkins e Gary Oldman: elenco estelar em filme de Coppola está na Netflix

Algumas narrativas parecem desenhadas para testar limites éticos e afetivos, e “Drácula de Bram Stoker” insiste justamente nessa fricção entre desejo e ameaça. A trama acompanha Jonathan Harker, interpretado por Keanu Reeves, um jovem corretor que viaja para a Transilvânia para concluir uma negociação imobiliária com o enigmático conde vivido por Gary Oldman. O que deveria ser um expediente burocrático se converte em cárcere disfarçado: Jonathan percebe, tarde demais, que o anfitrião não tem qualquer intenção de deixá-lo sair. Paralelamente, a noiva dele, Mina, vivida por Winona Ryder, conhece em Londres uma figura sofisticada e magnética sem desconfiar que se trata justamente do predador que aprisiona o homem que ela ama. A partir daí, a história migra para uma inquietação mais profunda: até que ponto o desejo é realmente nosso quando alguém domina não apenas o corpo, mas a vontade? Essa pergunta ronda cada gesto, cada olhar e cada aproximação entre Mina e o conde, cuja personalidade se alterna entre a rigidez secular e um romantismo quase arqueológico, como se amasse há séculos a ideia de amar alguém.

O filme transforma essa relação em uma metáfora elegante sobre controle. Gary Oldman dá ao conde uma presença que oscila entre fragilidade e ferocidade, configurando um antagonista que não se contenta em ser lido como vilão. Ele manipula, seduz, corrompe e reconstrói, enquanto Mina tenta organizar seus sentimentos em meio a uma Londres que parece adormecida diante da própria degradação moral. A crítica social é sutil, mas persiste: a cidade moderna, tão orgulhosa de seu racionalismo vitoriano, é incapaz de perceber o que se infiltra pelos becos e pelas janelas entreabertas. Em seu estado mais vulnerável, Mina se torna um espelho desconfortável das contradições de uma sociedade que repudia a liberdade feminina, mas se compraz ao vigiar cada passo das mulheres que a habitam.

Corpos, sombras e excessos

Francis Ford Coppola conduz o filme com um evidente prazer estético. Não há economia na composição de cenas, nem medo de exagerar em figurinos, texturas e luzes que oscilam entre o luxo e o grotesco. As aparições de Lucy, interpretada por Sadie Frost, reforçam esse mergulho no sensorial: febril, hipnotizada e arrastada para uma energia que ela não compreende, Lucy encarna o lado mais impulsivo da história, como se representasse a parte reprimida de uma era que ainda calcula seus desejos em nome da civilidade. Quando ela se entrega ao conde, o filme intensifica um erotismo que não é gratuito; é a manifestação visceral da força que ele exerce sobre mentes e corpos.

Keanu Reeves, como Jonathan, não acompanha o nível dos colegas, mas sua rigidez involuntária acaba criando um contraste curioso: enquanto o restante do elenco vibra entre terror e fascínio, Jonathan funciona quase como uma interrupção emocional. Se o filme perde em potência dramática nesse ponto, ele ganha de volta em outras frentes, especialmente na interação entre Anthony Hopkins e o restante do grupo que tenta conter o avanço do conde. O ator interpreta Van Helsing com uma excentricidade calculada, como se considerasse tudo ao redor um grande enigma biológico misturado a delírios religiosos. Ele enxerga no vampiro mais que um inimigo; vê um fenômeno histórico, um sobrevivente de guerras, dogmas e ruínas. Essa leitura dá ao personagem um peso intelectual que impede que a narrativa escorregue para o maniqueísmo fácil.

O mito refeito e a pergunta que resta

O que faz “Drácula de Bram Stoker” tão marcante é justamente o fato de não seguir a rota previsível das adaptações confortáveis. Coppola prefere abraçar o exagero, a teatralidade e a estética quase ritualística, como se quisesse devolver ao mito uma dimensão ancestral que a cultura pop diluiu. O filme se apoia na tragédia romântica, mas também escancara as fissuras morais que permitem que um ser tão antigo atravesse séculos explorando fragilidades coletivas. Em sua essência, o enredo não trata apenas de vampirismo; trata de como civilizações inteiras convivem com figuras que concentram poder absoluto e redefinem o significado de consentimento.

A pergunta que fica suspensa, quando terminam as últimas cenas, não é se o conde é monstruoso. Isso é óbvio desde o início. A inquietação real está na facilidade com que esse monstro encontra portas destrancadas. Talvez esse seja o desconforto mais atual do filme: a percepção de que o horror não precisa mais de castelos isolados para prosperar. Basta atravessar a vida cotidiana e identificar onde o fascínio se confunde com submissão e onde o desejo encontra, inadvertidamente, seu próprio algoz.

Filme: Drácula de Bram Stocker
Diretor: Francis Ford Coppola
Ano: 1992
Gênero: Fantasia/horror/Mistério/Suspense/Terror
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★