Em sua força misteriosa, a vida sempre encontra meios de seguir adiante, convidando-nos a juntar os estilhaços e transformá-los em recomeços. Cada passo carrega a sombra de uma história inteira, porém brilha a promessa de um alvorecer revigorante, que dosa nostalgia e futuro. Ninguém está a salvo dos tantos reveses da vida, a despeito de idade, estrato social, boas condições de saúde ou anos de sessões com terapeutas caros. A protagonista de “Uma Bela Manhã” escancara dramas cheios de notas quase trágicas de uma mulher perdida no labirinto de sentimentos que vai se estreitando à medida que uma verdade torna-se evidente. Arguta observadora dos grandes e pequenos fracassos de gente comum, a francesa Mia Hansen-Løve continua a demonstrar aqui a sensibilidade vista em “A Ilha de Bergman” (2021), “Adeus, Primeiro Amor” (2011) ou “O Que Está Por Vir” (2016), investigações certeiras sobre aflições e afetos. Sem abrir mão da esperança.
Sandra Kienzler atravessa uma fase pouco auspiciosa. Há alguns anos, ela perdeu o marido e cria a Linn sem rede de apoio, mas não se queixa. Tudo começa a apertar mesmo é quando Georg, seu pai idoso, dá sinais de que irádefinharantes do que todos pensavam,acometido pela piora da síndrome de Benson. Esse mal degenerativo arruína seu sistema nervoso central e mina sua acuidade visual, num ritmo frenético e de modo tão inclemente que ele nem se situa mais no apartamento do qual não sai faz tempo, cercado de livros e memórias que só tem significado para ele.Hansen-Løve concentra-se nos personagens de Léa Seydoux e Pascal Greggory para fazer com que o público tenha a sensação de uma proximidade natural com aquelas pessoas, como se as conhecesse. E eles correspondem. Seydoux e Greggory alinhavam todo o filme, prestando atenção ao menor gesto, dizendo suas falas como se quisessem despertar não piedade por Sandra e Georg, mas respeito. Ambos lutam por sua sobrevivência.
Sandra tenta esquecer esse martírio nos cuidados com Linn, mas resta nítida a impressão de que sua cura está além dos círculos em que já orbita. No turbilhão entre agônico e de um improvável relaxamento, de visitas a possíveis casas de repouso para o pai e o corre-corre para buscar a filha na escola ou nas aulas de esgrima, aparece Clément, um ex-namorado agora comprometido que decide que é o caso de uma reconciliação. A diretora brinca com o espectador, ora insinuando que Sandra não leva a sério o romance para, não muito depois, mostrar uma mulher loucamente apaixonada, uma equação muito delicada que Seydoux domina. Melvil Poupaud, por seu turno, inspira simpatia e repulsa, encarnando um cafajeste sensível, que degringola num tipo pusilânime, que primeiro diz que irá abandonar a esposa pela amante, mas volta atrás. No fundo, é disso que “Uma Bela Manhã” trata.
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