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Globo de Ouro 2026: suspense com Leonardo DiCaprio e Sean Penn, recordista de 9 indicações, estreia sob demanda no Prime Video Divulgação / Warner Bros.

Globo de Ouro 2026: suspense com Leonardo DiCaprio e Sean Penn, recordista de 9 indicações, estreia sob demanda no Prime Video

Bob Ferguson vive escondido numa versão deformada da Califórnia, cercado por mato alto, câmeras baratas e uma desordem doméstica que parece nunca ter sido só bagunça. Ao lado da filha adolescente, Willa, ele tenta manter uma rotina precária, meio pastoral, meio paranoica, enquanto o passado insiste em voltar nos noticiários e nos pesadelos. Em “Uma Batalha Após a Outra”, Paul Thomas Anderson coloca Leonardo DiCaprio, Teyana Taylor e Sean Penn no centro de um drama de ação em que o conflito principal é brutalmente simples: um ex-revolucionário falido precisa proteger a filha quando o inimigo de décadas reaparece, armado com o Estado e com rancor.

Antes de chegar a esse retiro improvisado, o filme recua para o tempo em que Bob ainda atendia por outro nome e era parte ativa do grupo radical French 75. Ao lado de Perfidia Beverly Hills, interpretada por Teyana Taylor, ele participava de ataques espetaculares a centros de detenção de imigrantes na fronteira, misturando libertação real de pessoas presas com gestos calculados de provocação diante das câmeras. É nessa fase que nasce a rivalidade pessoal com o coronel Steven J. Lockjaw, vivido por Sean Penn, figura militar grotesca e ao mesmo tempo assustadoramente verossímil, cuja obsessão combina desejo, ódio de classe e racismo institucionalizado.

O salto de dezesseis anos que separa a juventude armada daquele presente cheio de maconha e desânimo é o movimento mais importante para entender o tom do filme. Bob agora fuma demais, fala pouco, improvisa pequenos trabalhos e tenta convencer Willa de que o melhor é ficar fora de qualquer encrenca, enquanto o país endureceu fronteiras, ampliou centros de detenção e normalizou milícias. Ela, por sua vez, cresceu ouvindo versões cuidadosamente editadas da história da família e sente que há algo errado no modo como o pai evita certos nomes, certas cidades, certas datas. A ausência de decisão clara de Bob sobre contar a verdade já é, por si, uma decisão que empurra a filha para os braços de outros adultos, como a militante Deandra e o enigmático Sensei Sergio.

Quando Lockjaw volta à cena, com todo o aparato de um Estado que decidiu tratar dissidência como terrorismo permanente, a narrativa muda de velocidade. Willa desaparece, e o cotidiano improvisado daquele refúgio se desmonta em minutos. Bob é obrigado a reativar contatos, pedir favores, aceitar ajuda de quem desprezou. Cada tentativa de resgate revela um pedaço do que foi apagado da memória da menina: o grau de violência das ações do French 75, a traição de Perfidia, o modo como o inimigo usou o desejo e o medo para desmontar a organização. Anderson articula a partir daí uma sequência de idas e vindas entre esconderijos, conventos, quartéis e estradas, sempre com o relógio político e afetivo marcando que aquelas pessoas já não têm décadas pela frente, só dias incertos.

Perfidia, Willa e escolhas de sobrevivência

Em certo trecho, o filme praticamente se comprime na figura de Perfidia, não mais apenas ícone da rebelião, mas mulher que fez escolhas que atravessam o corpo, a lealdade e a própria ideia de causa. Teyana Taylor dá à personagem um jeito de quem se recusa a pedir desculpa e, ao mesmo tempo, carrega na expressão o peso de ter vendido camaradas para escapar de uma pena exemplar. A relação dela com Lockjaw, que em outros contextos viraria caricatura, aqui mantém um desconforto teimoso: há abuso, negociação, cálculo, uma espécie de prazer que não anula a violência. Esse terreno escorregadio é talvez o ponto em que o filme mais arrisca perder o equilíbrio, ou melhor, em que força o espectador a aceitar que uma história de revolução e contrarrevolução também passa por arranjos sexuais pouco edificantes.

Em paralelo, Willa ganha espaço sem virar símbolo vazio. Chase Infiniti encontra um meio-termo raro entre bravata adolescente e fragilidade concreta. À medida que descobre que sua vida inteira foi construída sobre identidades falsas, delações e cadáveres que ela nunca viu, a jovem atualiza o velho dilema de herdar uma luta ou abandonar o legado. Ela não tem a retórica do pai nem a fé quase mística de alguns veteranos, mas entende a linguagem dos vídeos, dos registros, dos protestos que acontecem com celular em punho. A certa altura, a segurança dela passa a depender da capacidade de ler rapidamente quem está ali para protegê-la e quem só quer transformar seu corpo em moeda num jogo maior.

Estrada, política e forma visual

Há um parágrafo do filme que quase se escreve sozinho em imagens de estrada. Carros compridos, viaturas discretas, caminhonetes com adesivos ameaçadores, um trecho de rodovia que se repete sob ângulos levemente diferentes, faróis cruzando a poeira do deserto. Bob persegue, é perseguido, tenta antecipar rotas, erra. Willa dirige sozinha, vacila, insiste. Nada de música triunfante, só a mistura de motores, vento e o desenho irregular dos faróis no asfalto. As decisões ali são simples: acelerar, frear, manter o volante firme, desviar. O efeito é devastador porque o filme deixa claro que qualquer erro transforma um protesto torto em luto definitivo.

Se o enredo poderia virar apenas manual ilustrado sobre “luta contra o fascismo”, Anderson insiste em sabotar essa leitura confortável. O grupo French 75 é mostrado em toda sua desorganização, com egos inflados, estratégias improvisadas e um gosto pela encenação que às vezes parece mais interessado em humilhar figuras de poder diante das câmeras do que em garantir segurança para quem está preso nos centros de detenção. Os oponentes, por outro lado, não são gênios malignos; são burocratas armados, homens ressentidos que encontram no uniforme e na hierarquia o pretexto ideal para transformar preconceito em política de Estado. O choque entre essas duas formas de delírio preenche a tela mais do que qualquer discurso.

Visualmente, o filme aproveita o formato amplo de VistaVision e as projeções em 70 mm para enfiar o espectador no meio da confusão sem recorrer à perfeição asséptica do digital. A câmera fica muitas vezes colada aos carros, às grades, aos corpos em corrida, aceitando trepidações e pequenos borrões de luz em nome de uma sensação física de risco. Não é virtuosismo gratuito: a escolha técnica acentua a diferença entre o controle remoto dos drones militares e a precariedade suada de quem ainda depende do próprio corpo para ocupar rua, invadir prédio, pular cerca. O tempo dramático ganha peso porque o espaço deixa de ser fundo neutro e vira labirinto real.

Elenco, últimos portões e persistência

As atuações ancoram esse caos. DiCaprio constrói Bob como alguém que já apanhou demais da História e, mesmo assim, continua tropeçando para a frente, com humor irritado, olhos sempre ligeiramente vermelhos e um jeito de andar que alterna cansaço e prontidão. Sean Penn faz de Lockjaw uma figura quase cartunesca na superfície, mas perigosa em cada decisão tática, desde uma negociação privada até a forma como autoriza a violência de subordinados. Benicio del Toro aparece menos do que talvez o público esperasse, porém cada aparição de Sensei Sergio reorganiza o tabuleiro, seja oferecendo fuga, seja lembrando que nem todo mentor tem interesse real em proteger discípulos. E Chase Infiniti, no meio desses gigantes, termina ocupando o centro afetivo da história sem discurso inflamado, só com olhar insistente e mãos que aprendem rápido a segurar uma arma e um volante.

O que fica de “Uma Batalha Após a Outra” não é apenas a soma de explosões, slogans e perseguições, mas a repetição discretamente cruel de portões que se abrem e se fecham. Portão de centro de detenção, portão de condomínio, portão de convento, portão de casa improvisada num terreno baldio. Cada abertura parece libertar, cada fechamento promete segurança, e nada disso dura muito. A batalha seguinte já está ali, na forma de um documento exigido, de um vídeo editado, de uma nova patrulha na estrada. O filme termina menos como grito de vitória e mais como constatação concreta de que, para aquele pai e aquela filha, sobreviver significa continuar atravessando portas pesadas, uma após a outra.

Filme: Uma Batalha Após a Outra
Diretor: Paul Thomas Anderson
Ano: 2025
Gênero: Ação/Crime/Drama/Épico/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★