A primeira imagem marcante é a de um magnata europeu percorrendo o próprio palácio como se fosse uma maquete habitável, cercado por aviões e caixas de sapato cheias de papéis enquanto assessores disputam sua atenção em vários idiomas. Só mais adiante a história se revela como “O Esquema Fenício”, dirigido por Wes Anderson e estrelado por Benicio Del Toro, Mia Threapleton e Michael Cera, sobre o industrial e traficante de armas Zsa-Zsa Korda tentando equilibrar um megaprojeto e a reconciliação com a filha freira.
Ambientado numa Phoenicia imaginária, Estado do Oriente Médio reconfigurado na década de 1950, o filme começa quando Zsa-Zsa sobrevive a mais uma tentativa de assassinato e acorda depois de visitar um tribunal celestial que funciona como repartição pública. A experiência não o transforma em santo, mas deixa a impressão incômoda de que o tempo de impunidade encurtou. De volta ao palácio, ele decide acelerar um plano para reconstruir a infraestrutura do país, apostando toda a fortuna e a reputação nesse negócio.
Esse plano, apelidado de esquema fenício por diplomatas cínicos, envolve portos, oleodutos, ferrovias e um exército de trabalhadores em condições precárias, todos convertidos em gráficos guardados naquelas mesmas caixas de sapato. Governos interessados em controlar o fluxo de armas e dinheiro fingem apoiar o projeto enquanto articulam ações para derrubá-lo. Grupos militantes veem na obra um alvo e, em Korda, um símbolo da riqueza que lucra com guerras alheias, o que transforma cada reunião de negócios numa negociação de sobrevivência.
No meio da pressão geopolítica, Anderson empurra o filme para dentro de uma saga familiar. Liesl, vivida por Mia Threapleton, surge em um convento onde cumpre a rotina de noviça desde criança. Korda decide chamá-la de volta e pede que abandone a vida religiosa para assumir parte da empresa, numa proposta que soa ao mesmo tempo como pedido de desculpas e tentativa de controle. Ela aceita visitar o palácio, mas leva consigo desconfiança, alimentada por boatos de que o pai teria responsabilidade pela morte da mãe.
É nessa ponte entre convento e sala de crise que entra Bjørn, interpretado por Michael Cera, entomólogo norueguês promovido a secretário e consultor improvisado. Ele cataloga insetos e contratos com o mesmo cuidado científico e acompanha Liesl pelos corredores cheios de ministros, lobistas e generais, explicando mapas e relatórios como se comentasse o comportamento de uma colônia. A presença dele injeta humor e reforça a estranheza daquele universo em que decisões sobre vidas inteiras são tomadas em mesas decoradas com miniaturas coloridas.
À medida que o projeto avança, o filme se organiza em etapas nítidas. Há o anúncio público. Depois, a assinatura forçada de contratos. Em seguida, ameaças anônimas. Um atentado frustrado. Uma sabotagem no canteiro de obras. Uma reunião de emergência em que ninguém admite culpa, mas todos calculam o prejuízo. Korda reage dobrando a aposta. Altera cronogramas. Envia mensageiros ao deserto. Pede à filha que assine documentos decisivos. Cada passo adiante comprime um pouco mais o espaço de recuo.
Se o contexto remete a conflitos reais do Oriente Médio, Anderson prefere desenhar uma Phoenicia que parece saída de cartazes de viagem dos anos 1950, com hotéis art déco, chapéus vermelhos alinhados e bandeiras inventadas, o que dá ao filme um charme imediato e, ao mesmo tempo, uma artificialidade incômoda, porque suaviza guerras, deslocamentos e traumas em imagens elegantes demais, ou melhor, em imagens que parecem feitas para caber precisamente dentro da moldura simétrica de cada plano.
A fotografia de Bruno Delbonnel reforça essa sensação de mundo repartido em compartimentos ao tratar o palácio, o convento e o deserto quase como maquetes iluminadas de maneira diferente, sempre com linhas rígidas que enquadram os personagens em portas e janelas estreitas. A trilha de Alexandre Desplat oscila entre temas de suspense e melodias quase cômicas, sublinhando o quanto a narrativa oscila entre perigo e farsa. Em certos momentos, o som se cala e só restam passos em corredores longos; a leveza se retira.
Benicio Del Toro aproveita a moldura para construir um Zsa-Zsa que alterna sedução e crueldade com pequenas variações de voz e postura, um homem que parece acreditar na própria farsa de benfeitor enquanto assina ordens que condenam gente ao trabalho forçado. Mia Threapleton faz de Liesl uma presença seca, que quase nunca levanta o tom, mas reage com olhos arregalados a cada revelação sobre o esquema. Entre os dois, Michael Cera age como válvula de escape e lembrete constante de que tudo ali é absurdo.
O roteiro conduz pai e filha até um ponto em que o esquema deixa de ser abstração em maquete e passa a significar, de modo explícito, prisões ampliadas, fronteiras vigiadas e populações inteiras deslocadas para sustentar o projeto. Pressionado por governos que querem uma saída elegante e por militantes que planejam uma ação espetacular, Korda precisa decidir se sacrifica parte da obra para preservar a imagem pública ou se mantém o plano intacto, mesmo correndo o risco de arrastar Liesl junto para a queda.
Anderson retorna às caixas de sapato empilhadas no escritório do protagonista justamente quando tudo está à beira de desandar, cada uma contendo mapas, contratos, recortes de jornal e pequenos objetos retirados do deserto. É nesse arquivo aparentemente organizado que a bagunça moral do filme se torna mais nítida. A combinação de humor, melancolia e violência burocrática pode cansar alguns espectadores, mas também revela, com uma clareza desconfortável, o tipo de fantasia de ordem que costuma acompanhar quem sonha com poder e redenção.
★★★★★★★★★★



