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Filme de ação tailandês de baixo orçamento supera “Jay Kelly” e vira número 1 na Netflix Brasil Divulgação / Saban Films

Filme de ação tailandês de baixo orçamento supera “Jay Kelly” e vira número 1 na Netflix Brasil

O ponto de partida de “Alvo da Máfia” é direto. William Bang, vivido por Jack Kesy, é o matador mais eficiente de uma quadrilha que domina um recorte de cidade anônima, filmada na Tailândia, mas desenhada para funcionar como qualquer metrópole do crime global. Depois de executar mais um serviço para o chefe interpretado por Peter Weller, ele sofre uma tentativa de assassinato, sobrevive por pouco e toma a decisão que sustenta o filme inteiro: trair a própria gangue na esperança de abandonar uma vida construída sobre cadáveres.

Wych Kaosayananda, diretor tailandês que já havia circulado pelo mercado internacional com “One Night in Bangkok”, organiza a narrativa como rota de fuga. A partir do momento em que Bang resolve sair, cada passo é deslocamento em direção a um futuro menos sangrento e, ao mesmo tempo, retorno ao passado que o formou. O roteiro, assinado por Peter M. Lenkov e Ken Solarz, não tenta reinventar o gênero. Prefere seguir a curva clássica do assassino em busca de redenção, cercado por inimigos visíveis e por uma culpa que não some com mudança de endereço.

Logo no início, o filme estabelece a rotina de Bang com precisão quase mecânica. Entrar, matar, sair. Entre um trabalho e outro, encontros rápidos com colegas de crime, dinheiro contado, noites que se repetem em apartamentos de passagem. A tentativa de executá-lo rompe esse automatismo. A emboscada em corredor estreito, com rajadas de tiros e edição digital pesada, interessa menos como demonstração de efeitos do que como ponto de inflexão: ao ver a própria morte tão perto, o personagem entende que seu tempo como ferramenta descartável chegou ao limite.

A partir daí, “Alvo da Máfia” assume formato de perseguição permanente. Bang tenta negociar uma saída, mas as regras do submundo são conhecidas de qualquer espectador habituado a filmes de gângster: ninguém simplesmente se aposenta. O chefe, interpretado por Weller com um cansaço azedo que acompanha a idade do personagem, enxerga a deserção como afronta à autoridade e libera a caça. Surgem aliados temporários, intermediários que vendem proteção em troca de dinheiro ou informações, mas o filme rapidamente deixa claro que, no que importa, o protagonista está sozinho.

O orçamento modesto, estimado em poucos milhões de dólares, aparece tanto nas limitações quanto nas soluções. Muitas cenas de ação se desenrolam em galpões, estacionamentos, interiores de carros. A fotografia aposta em sombras marcadas e focos de luz para sugerir um mundo urbano saturado sem exigir grandes construções de cenário. Quando a câmera se arrisca na rua, a Tailândia real aparece em flashes: fachadas, becos, cruzamentos congestionados que poderiam pertencer a qualquer cidade em crise econômica. Essa economia de meios reforça a sensação de confinamento, mesmo em ambientes teoricamente abertos.

O eixo moral de Bang é simples, mas eficaz. Ele não surge como vítima inocente que teria caído no crime por acaso. É um profissional experiente, responsável por mortes ao longo de anos, que de repente se pergunta se ainda existe fronteira possível entre o homem e o matador. O filme insiste nessa dúvida em breves conversas sobre família, em tentativas de imaginar outra vida, em momentos em que o personagem hesita antes de atirar. Kesy opta por interpretação contida, muito baseada em olhar baixo, ombros tensos, pequenas pausas antes de responder. Para alguns, pode soar como falta de nuance; aqui, combina com a ideia de um sujeito sem repertório afetivo tentando nomear um desconforto novo.

Do outro lado, os antagonistas não ganham muita espessura individual, e isso parece deliberado. “Alvo da Máfia” não se interessa por uma grande conspiração nem por um vilão exuberante que roube a atenção. O alvo é o sistema. O chefe vivido por Weller funciona como rosto de um mecanismo mais amplo, no qual homens lucram mantendo outros homens em rotação constante de violência. Os capangas que perseguem Bang são quase intercambiáveis, reforçando a percepção de que, para o crime organizado, qualquer peça é substituível e qualquer tentativa de saída pode ser respondida com outra bala.

O filme não abandona o prazer elementar do thriller de ação. Há tiroteios coreografados com clareza, perseguições que exploram bem ruas estreitas e escadas externas, lutas corpo a corpo em corredores de motel e cozinhas industriais. Em alguns momentos, a montagem acelera demais e força o espectador a encarar o peso do digital, com explosões de banco de efeitos e sangue pouco convincente. Em outros, uma escolha mais simples — manter a câmera alguns segundos a mais numa troca de olhares — rende mais do que uma sequência inteira de disparos.

O contexto de lançamento ajuda a entender por que um filme assim ganhou visibilidade. Lançado em julho nos Estados Unidos com o título “Bang” e passagem discreta pelos cinemas, o longa encontrou segunda vida ao ser comprado pela Netflix e, em dezembro, entrar no catálogo brasileiro como “Alvo da Máfia”. Em poucos dias, passou a figurar entre os filmes mais vistos da plataforma no país, disputando atenção com produções de maior prestígio, como o drama “Jay Kelly”, de Noah Baumbach, citado como candidato a prêmios. A combinação de título pouco conhecido, origem tailandesa e aparência de filme de TV a cabo despertou curiosidade.

Há um interesse particular em ver um produto claramente menor furar a bolha de lançamentos inflados por campanhas globais. Para parte do público, pesa a nostalgia: “Alvo da Máfia” lembra os thrillers de locadora dos anos 1990 e 2000, filmes de ação noturna que chegavam direto ao vídeo, com estrelas de segundo escalão e roteiros escritos para caber em 90 minutos. A diferença é que, agora, em vez de prateleira física, o espaço de descoberta é o carrossel de uma plataforma de streaming.

Nada disso transforma o longa em rara revelação artística. A trama segue trilha conhecida, as reviravoltas são relativamente previsíveis e o retrato da culpa de Bang não ultrapassa o esquema básico do gênero. Ainda assim, há interesse em observar como um filme de produção tailandesa, falado em inglês, com orçamento contido e elenco sem nomes de primeira linha, encontra lugar no mesmo catálogo de superproduções e dramas cotados ao Oscar. A trajetória desse matador fictício, perseguido pelos antigos patrões, acaba funcionando como metáfora involuntária de um mercado em que as cartas parecem marcadas, mas onde, de vez em quando, um projeto pequeno encontra brecha para sair da fila e ocupar a dianteira, ainda que por pouco tempo.

Filme: Alvo da Máfia
Diretor: Wych Kaosayananda
Ano: 2025
Gênero: Ação/Crime/Thriller
Avaliação: 6/10 1 1
★★★★★★★★★★